Crónica de Alice Vieira | No centenário de Matilde Rosa Araújo

Alice Vieira

 

No centenário de Matilde Rosa Araújo
Por Alice Vieira

 

“Conheci a Matilde Rosa Araújo há 60 anos, e fiquei logo amiga dela”—disse há dias, quando participava por zoom num encontro a propósito do centenário do seu nascimento.

Mas houve logo quem me corrigisse o tempo verbal, dizendo que as amizades se escrevem sempre no presente.

Mas essa é uma daquelas frases que se dizem sempre quando temos saudades de alguém e queremos apaziguar um pouco os nossos corações. Mas a verdade é que as pessoas desaparecem e vamos ter de fazer o resto das nossas vidas sem elas.

E ainda hoje, 11 anos depois da sua morte, a Matilde me faz  muita falta.

A Matilde acompanhou sempre a minha vida– desde o dia em que a encontrei numa sala do “Diário de Lisboa”, tinha eu 18 anos, e estava a tentar entender que coisa era essa de um jornal.

A Matilde pertencia ao júri de um concurso que o DL organizava todos os anos, “O Natal Visto Pelas Crianças”. Júri de peso: para além dela, José Gomes Ferreira, Alice Gomes, Calvet de Magalhães, António Domingues e Mário Castrim (o coordenador)

A Matilde foi a última sobrevivente desse grupo.

Há histórias de nós duas que ela levou consigo e que não posso partilhar com mais ninguém. E devo-lhe, para além de tudo o mais, a palavra sempre serena nos momentos difíceis, e uma amizade que nunca teve quebras.

Um dia, de mal com o mundo e com os meus verdes anos, bati com a porta e fui viver para Paris.

Nas cartas que me escrevia, nunca a Matilde me reprovou o gesto.

Não dava lições de moral, não repetia “acho que…”, nem “olha que…”

Falava apenas de pessoas. De pessoas nossas conhecidas. Dava notícias delas. Como estavam. O que faziam ou não faziam. Se pareciam mais magras, mais envelhecidas, mais curvadas.

Notícias, apenas.

Que me fizeram um dia emalar a trouxa e regressar.

Ficou-nos, desde então, o hábito das cartas e dos postais. Cartas de muitas folhas, porque a letra da Matilde espraiava-se pela página como se não houvesse limites. E postais, sempre, onde quer que fôssemos.

E fomos sempre muito fiéis no festejar de datas importantes: para lá das óbvias e das que toda a gente festeja, acrescentávamos sempre, com devoção e pontualidade, os parabéns em dia de Sta. Matilde (14 de Março)  e de Sta. Alice (12 de Junho )

Com a Matilde partilhei grandes alegrias e grandes mágoas, mas também as pequeninas alegrias e as pequeninas mágoas do dia a dia, que às vezes são bem mais importantes do que as que se escrevem com maiúscula.

A Matilde conheceu os homens da minha vida, viu nascer os meus filhos, viu nascer os meus netos.

Claro que a vida se vai encarregando de nos colocar no colo novas amizades, e que seria de nós sem essa renovação.

Mas a Matilde era o meu passado e é, ainda hoje, o meu presente.

E se decidi recordá-la aqui hoje é porque me parece que o centenário do seu nascimento está a passar despercebido.

E acho que todas as escolas, todas as bibliotecas se deviam empenhar a sério nisso.

Pelo menos, deixo aqui a lembrança.


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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