Memória curta
Por Alice Vieira
Hoje vou falar de um grande amigo, meu camarada de redacção do “DN” durante vários anos, que morreu no passado dia 5, a meses de fazer 101 anos.
Mas primeiro vou contar uma história divertida.
Durante muitos anos o meu amigo foi padre. Chegou a ser director de um seminário, não me lembro bem onde.
Mas um dia atravessou-se-lhe no caminho uma verdadeira luz, e não houve nada a fazer. Para ambos foi paixão, que duraria até à sua morte.
Deixou de ser padre, casaram — e nasceu um bebé.
Nessa altura já ele trabalhava no “DN”, depois de ter passado pelo “Diário Popular”
Um dia foi convidado a ir a um programa de televisão.
E disse-me:
“Só quero ver o que é que amanhã o seu marido vai dizer de mim!”
Rimos ambos e eu disse-lhe:
“Seja o que for que o meu marido escreva, eu continuo a ser sua amiga como sempre; mas também não vou pedir ao meu marido que diga bem de si. Ele escreverá o que entender”
O programa não correu lá muito bem — e o meu marido desancou-o de alto a baixo
No dia seguinte, quando chegámos ao jornal, não falámos sobre isso, mas olhámos um para outro e desatámos a rir. E tudo passou.
Dias depois, ele estava de folga e eu saí do jornal um pouco mais tarde do que era habitual. Quando eu entro em casa, oiço o meu marido ao telefone numa conversa estranha:
“ Não, assim não… Estenda lá o pano outra vez… Agora faça como eu lhe digo: estique uma parte para o seu lado esquerdo..A gora estique a outra parte para o seu lado direito…”
Resumindo: o meu marido — pai tardio — estava a ensiná-lo a ele — pai tardio também — a pôr a fralda ao filho.
Depois disto ficaram amigos para o resto da vida.
Agora vem a parte que não tem graça nenhuma. Mesmo nenhuma.
Este meu amigo chamava-se Pacheco de Andrade.
Bom jornalista, um dos fundadores do “Clube de Imprensa”, participou em vários congressos, escreveu livros (lembro-me de um sobre D. António Ferreira Gomes, de quem era muito amigo), etc.
Pois querem crer que não saiu nem uma linha sobre a sua morte? Nem nos jornais, nem na televisão, nem na rádio. Nada. Absolutamente nada. Os nossos colegas todos a ligarem-me, a quererem saber para que igreja ele tinha ido, quando seria o enterro, eles próprios a tentarem descobrir através da net — e nada. Nem uma palavra
Realmente as pessoas têm a memória muito curta.
Pelo menos tenho a satisfação de saber que ele teve uma vida cheia e boa. Que conseguiu ultrapassar todos os problemas. E que deve ter sido feliz.
A esta hora deve estar lá no céu a sorrir para nós, e a ensinar o São José a pôr uma fralda ao Menino Jesus
Alice Vieira
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira