Lojas de outros tempos
Alice Vieira
Lembro-me de mim , pela mão das minhas tias, a entrar na loja. Sempre a mesma. A Casa Frazão, na Rua Augusta, em Lisboa.
Sentavam-me em cima do balcão enquanto elas ficavam horas infindas a ver amostras, a discutir cores, a analisar a textura do tecido.
E eu gostava de ali estar. Havia um estranho cheiro a rosas e bafio, que nunca mais encontrei em lado nenhum.
Às vezes as tias punham-me no chão e vinha um senhor com um pau (“o metro”, diziam elas) que punha na minha frente e depois tomava notas num papel, murmurando: “altura”, “largura”, “dos ombros à cintura”, “da cintura ao fim da saia”.
“É preciso contar com a baínha”, diziam as tias muitas vezes, e o senhor concordava, “sim, sim, claro, a baínha”, e emendava os números que tinha escrito no papel.
Depois o senhor largava o metro e começava a cortar o pano.
E nos dias seguintes , lá em casa, a Menina Lucinda havia de transformar aquilo em vestidos ou bibes ou saias ou blusas.
Por vezes os tecidos também eram para as minhas tias. Sobretudo naquela altura do ano em que já não era verão e ainda não era inverno, naquele outono a que então se chamava “a meia estação”. Era um ritual ir à Casa Frazão comprar tecidos para o guarda-roupa da meia estação. E em casa a Menina Lucinda não tinha mãos a medir.
Ninguém sonhava que um dia iria aparecer uma coisa chamada pronto-a-vestir. Não havia Zaras, nem grandes superfícies, nem lojas dos chineses. Havia modistas e costureiras, que faziam o que era preciso. E lojas, muitas lojas, onde se iam comprar os tecidos.
Como a Casa Frazão, onde passei anos da minha infância sentada em cima do balcão, no meio daquele estranho cheiro a rosas e bafio.
A Casa Frazão—que agora tem à porta um grande letreiro a avisar que está tudo com desconto de 70 por cento.
Porque, ao fim de 85 anos de vida, a Casa Frazão tem morte anunciada para dia 30 de Junho.
Porque a moda é outra, os tempos são outros , nós somos outros—e até o tempo é outro, nesta estranha meteorologia que acabou com a meia estação, reduzindo tudo a verão e inverno.
Nem sei há quantos anos não entro na Casa Frazão. Por isso, mesmo sem querer, também faço parte dos que acabaram por ditar o fecho das suas portas.
E o fecho de tantas outras lojas nesta cidade de Lisboa, que cada vez mais se parece com outra qualquer cidade por esse mundo fora, sem nada que a distinga e faça alguém vir visitá-la porque é diferente.
Está bem, dantes Lisboa era uma cidade cinzenta e triste e cabisbaixa. Mas seria preciso mudá-la desta maneira?
Claro que as lojas também se devem adaptar aos novos tempos e se calhar a Casa Frazão, como tantas outras, não o fez (e o que poderia ter feito?)
Mas custa-me ver fechar aquelas portas.
Ainda tentei ligar a velhas amigas—mas nenhuma compreendia a minha tristeza porque já quase nenhuma se recordava de um dia lá ter entrado.
E eu fico a pensar nesse tempo de que hoje já poucos se lembram e tenho a vaga sensação de que uma criança, sentada em cima do balcão, me está a culpar por tudo terminar assim.
E há um estranho cheiro a rosas e bafio a encher-me a casa inteira.