Lembram-se dos Ballet Rose?
Por Alice Vieira
Em Dezembro de 1967 rebentou em Lisboa um dos maiores escândalos do tempo da ditadura, que ficou conhecido por “Ballet Rose”. Em 1997 a RTP exibiu uma grande série sobre esse assunto, com realização de Leonel Vieira, a RTP-Memória exibiu-a em 2016, e este mês novamente.
Revejo-a sempre. Aquela história de membros do governo, da alta finança, aristocratas, clero, metidos num sórdido caso de pedofilia e de prostituição de menores entre os 8 e os 12 anos. Uma rusga da polícia apanhou-os e mandou todos a tribunal. Apesar de muito pressionada para desistir, a PJ—honra lhe seja—não cedeu. E os juízes, nas primeiras sessões, também não se portaram mal. Mas foram várias sessões, para todos serem ouvidos, e no fim as ameaças e a chantagem foi de tal ordem que foram todos absolvidos.
No governo houve apenas um ministro decente: Antunes Varela, Ministro da Justiça, demitiu-se quando viu que tudo tinha sido ocultado.
Claro que a censura não deixou passar uma palavra que fosse. Era como se nunca nada tivesse existido.
Nesse tempo eu vivia em Paris. E claro que lá tínhamos conhecimento de tudo, até porque os jornais estrangeiros faziam primeiras páginas sobre o que estava a acontecer em Portugal. Sabíamos que, em Lisboa, Mário Soares, Francisco Sousa Tavares e Urbano Tavares Rodrigues tinham tentado denunciar o escândalo —e apanharam três meses de cadeia.
Apesar de conhecermos bem o nosso país, em Paris nem queríamos acreditar que nenhum tinha sido condenado e que o escândalo tinha sido completamente abafado. Não se falava noutra coisa.
Para aí dez anos depois, já eu trabalhava no “Diário de Notícias”, recebo um telefonema logo de manhã cedo na redacção. Uma voz de mulher perguntava-me se eu era jornalista, porque ela precisava muito de um jornalista para lhe contar muitas coisas importantes. Depois de uns minutos de silêncio, a mulher continuou:
“Alguma vez ouviu falar dos Ballet Rose? É que eu fui uma delas. Estou muito doente, não sei quanto tempo tenho de vida, e queria falar com um jornalista para lhe contar tudo, absolutamente tudo o que então aconteceu.”
Meio atarantada, pedi-lhe que esperasse um bocadinho—e fui ter com a directora de então, a Helena Marques. Que é que fazemos com isto, vou não vou…Até que a Helena decidiu que eu havia ir, mas no carro da casa e ele que esperasse por mim para eu poder regressar logo, se fosse qualquer aldrabice ou a coisa corresse mal.
A mulher deu-me a morada e lá fui. De facto estava acamada e mexia-se na cama com dificuldade. A vizinha de cima ajudava-a , mas ela pediu-lhe que se fosse embora e que só voltasse depois do almoço.
E durante horas e horas ela contou-me tudo, absolutamente tudo, nomes de todos e o que faziam na vida, como tratavam as crianças, abria a gaveta da mesinha de cabeceira para me mostrar as fotografias deles todos, insistindo em que as trouxesse para publicar na entrevista (coisa que, evidentemente não fiz).
Cheguei ao jornal sem saber o que fazer à minha vida. Contei tudo à Helena Marques.
“Escreva isso tudo”, disse ela.
“Tudo??”
“Absolutamente tudo.”
E eu escrevi tudo. Acho que foi das melhores entrevistas que publiquei na minha vida. Mas confesso que me custou muito escrever o final. Quando a mulher, depois de tudo, me disse:
“Mas a coisa principal que eu quero que escreva aí é que esses foram os melhores anos da minha vida, que não me arrependo de nada e que faria tudo outra vez, porque nunca fui tão feliz como então.”
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira