JUVENTUDE DE ESPÍRITO
Alice Vieira
Quando refiro a minha idade (que nunca escondo…) e, na melhor das intenções, as pessoas me dizem, com um sorriso de orelha a orelha, “o que interessa é a juventude de espírito”, lembro-me sempre do que respondia a minha prima Maria Lamas, no tempo em que vivi com ela em Paris:” pois é, mas infelizmente a juventude de espírito não me ajuda a descer escadas.”
Nestes últimos tempos tenho pensado muito nessa história da juventude de espírito. Porque também tem os seus inconvenientes. Quero eu dizer: às vezes o espírito é tão jovem, mas tão jovem, que já nem percebe nada do que estamos a dizer.
Todos os meu amigos são muito jovens. De espírito, claro, e de idade.
O que é óptimo. Com eles nunca estou parada, nunca falho teatros e músicas, nunca estou sozinha em casa.
O pior é que são realmente muito jovens. Todos da idade dos meus filhos ou até mais novos. Terei dois ou três que estão agora nos 60—mas só esses.
E a falta que me fazem amigos da minha idade! Há dias tinha-me acontecido uma coisa mesmo divertida, um encontro casual com o filho de um antigo professor do Liceu Pedro Nunes e quando cheguei a casa peguei no telemóvel para contar.
Mas…contar a quem?
Já tinham morrido todos os que iriam achar imensa graça à história. Já ninguém saberia do que eu estaria a falar.
E isso acontece-me cada vez com mais frequência.
Há dias, na Feira do Livro, aparece-me um leitor, para aí na casa dos 40, e já com um filho.
Palavra puxa palavra, e ele diz-me:
–Sou bisneto da Alice Ogando.
Foi uma festa. Estivemos ali imenso tempo na conversa e, quando ele se foi embora, eu disse ao pessoal (escritores, desenhadores, funcionários) da Leya que estava ao meu lado:
–Imaginem, era bisneto da Alice Ogando!
E todos olharam para mim como se eu tivesse dito era bisneto da maria cachucha.
Claro. Já ninguém sabe quem foi a Alice Ogando. Claro que já morreu há muito tempo, no princípio dos anos 80, e isso, como toda a gente sabe, foi na pré-história. A Alice Ogando, que se fartou de trabalhar na rádio (durante décadas fez teatro radiofónico) que escreveu romances , poesia, teatro , livros infantis, que trabalhou anos e anos nas revistas da Agência Portuguesa de Revistas, que foi tradutora oficial de Stefan Zweig (que também hoje já ninguém deve saber quem foi….)—é hoje um nome desconhecido.
Ainda eu não estava refeita do choque, quando ouvi num concurso da televisão falar do Prof.José Esteves, figura grande do desporto e da educação física no nosso país, presença habitual em debates, autor de vários livros, Doutor Honoris Causa pela Universidade Técnica—e também ninguém sabia quem era. Comentei o facto—e o resultado foi o mesmo: “quem?” “ah, não sei quem foi…” E o Prof. José Esteves morreu há quatro anos!!!
Por isso agora olho bem para a cara do meu interlocutor, vejo mais ou menos a idade que tem, e só depois arrisco.
É por este desconhecimento total que eu agora já nem me admiro com a resposta há dias de um concorrente nesse tal programa da RTP que, muito sério, afirmou que o pintor Domingos Sequeira tinha sido professor de pintura da rainha Isabel II de Inglaterra.
O Brexit deve ter começado aí.
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Alice Vieira.