Julgar pelas aparências
Por Alice Vieira
Um dos meus defeitos — que eu procuro destruir mas ainda não consegui, embora já esteja bem melhor…– é julgar as pessoas pela sua aparência.
Ontem vinha na rua com uma amiga e passou por nós um rapaz magrito, esfarrapado, olhos no chão e eu disse-lhe que ele devia estar à procura de emprego e de certeza que ainda não tinha arranjado. Ela riu-se: ”arranjar emprego? Ele e a irmã são donos daquela farmácia, ali no cimo da rua!”
Fiquei envergonhada, claro, mas também me ri, porque de repente veio-me à ideia uma história semelhante (ligeiramente pior…) que me tinha acontecido da primeira vez que fui a Chicago. O meu filho era professor de Matemática na Universidade do Illinois, foi-me buscar ao aeroporto e levou-me para casa. E ele e a minha nora fizeram o que eu também faria se estivesse no lugar deles: deixaram-me com os miúdos, ainda muito pequeninos, e foram jantar fora e ao cinema.
Dei-lhes de jantar, li-lhes a história da praxe, deitei-os e fui para a cozinha.
A casa era uma moradia muito bonita, com uma escada de madeira que dava para um grande jardim, e a porta da rua com uma janela de vidro a toda a largura, donde se via tudo lá fora.
De repente batem à porta.
Olho pelo vidro da janela e, para lá da escuridão completa lá por fora, vejo um negro mais negro do que todos os que eu até ali tinha visto, cabelo rasta a cair-lhe para os olhos, a cabeça dele a ocupar todo o vidro da janela, uma t-shirt de mangas rasgadas.
Tremi e pensei: “é o último dia da minha vida”.
Ainda por cima eu tinha vindo a ler a revista do avião, onde só havia textos sobre o Al Capone e o seu gang, e como eles faziam os ataques, e a mafia, e coisas assim tranquilizantes.
Abri muito ligeiramente a porta e ele estendeu-me o braço com um púcaro na mão a pedir-me leite. Com uma das mãos seguro a porta, para ele não poder entrar, e com a outra abro a porta do frigorífico. Nem fiz caso do púcaro, e dei-lhe um pacote inteiro.
E é nesta altura que ouço, do fundo da casa, a voz ensonada do meu neto mais novo a dizer “Hello”, e depois para mim:
“É colega do pai na universidade, nós ficamos muitas vezes em casa dele.”
A partir daí, de cada vez que eu encontrava o senhor (Senhor Professor!) só não lhe fazia uma vénia porque ele não iria perceber, mas eram sorrisos de orelha a orelha.
Ideias feitas que a gente tem…
Ainda por cima agora, nos tempos que correm, em que é muito mais fácil encontrar gente muito bem posta—sem um tostão, sem serem capazes de ler um livro ou de fazerem seja o que for…
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira