Falando de comida…mas não só
Por Alice Vieira
A CNN apresentou recentemente um programa em que anunciava não as 20 maravilhas de Portugal—mas quase.
Depois de apresentar Portugal como um dos países com melhor culinária, arriscou e votou nos 20 melhores pratos portugueses, e vários restaurantes onde eles se encontram –e alegrai-vos, ó jagozes porque , ao falarem de peixe, as “Furnas” aparece logo na lista… (Também é a única referência a esta zona, mas pronto, melhor que nada…)
Com alguma graça, o autor do texto diz que os restaurantes portugueses no estrangeiro já há muito que não deviam ser apenas “ para melancólicos emigrantes matarem as saudades da comidinha da mãe”—e eu lembrei-me logo da primeira fotografia que o meu filho me mandou quando foi fazer Erasmo para a Alemanha: num restaurante português chamado ”Bifanas”, a comer uma dita, e a ler a Bola. Em meia dúzia de dias, estava um emigrante perfeito. E de cada vez que eu lá ia vê-lo…vamos lá embora comer bacalhau, coisa que eu , realmente, há anos que não comia…Mas coitadinho ele ficava tão contente…
E a notícia lá ia falando de coisas que, para nós são evidentes. Cozido, qualquer tipo de peixe, o azeite, o queijo, o vinho, os enchidos, tripas, leitão, as enguias, o marisco, a doçaria (o que eu me ri com a “nun´s belly” = barrigas de freira, claro) etc, etc, etc…
Claro que temos uma grande cozinha, quem o duvida?
E foi ouvindo tudo isto que eu me senti verdadeiramente vingada. Levou anos, pois levou . Mais exactamente , 25 anos. Mas como todos sabemos, a vingança serve-se fria. Gelada ,neste caso.
Então aí vai.
Estávamos no PREC. (Haverá já alguém que não saiba o que foi? Então perguntem). José Saramago era o director do ”Diário de Notícias”, onde eu trabalhava.
Um dia mandaram-me fazer uma entrevista a um astronauta americano, já não me lembro qual, que estava de visita a Portugal com um filho adolescente.
Lá fui, lá falei com o senhor, que até era simpático, mas no fim o jovem também quis botar faladura.
Para dizer que tinha muita pena dos portugueses ,a terem de comer uma comida horrível, não tinha havido um único restaurante onde a comida prestasse, ele estava deserto para chegar aos Estados Unidos, etc, etc. Ainda tentei contrapor ,e falei à criatura de comida portuguesa muito boa, e a tudo ela franzia o nariz e dizia “horrible, horrible”.
Pronto, lá cheguei ao jornal, escrevi normalmente a entrevista—e depois, como no jornalismo se faz, escrevi uma “caixa”, assinada por mim, sobre a conversa do miúdo, coitadinho, que tinha achado a comida tão má, claro, nada que se comparasse aos hambúrgueres e essas coisas, tadinho, tinha rapado uma fome danada com a porcaria da nossa comida.
O texto lá seguiu—e passados uns minutos fui chamada ao gabinete do senhor Director.
Que nem pensasse em publicar aquilo, ele não o permitia, porque nós tínhamos de manter óptimas relações com os EUA—e portanto aquilo não passava.
A última vez que alguém me tinha dito “isto não passa” tinha sido no “Diário Popular”, nos tempos da censura.
E não passou.
Foi a primeira (e última…) vez que me cortaram um texto, depois do 25 de Abril. E isso não hei de esquecer nunca.
Por isso, 25 anos depois, ver jornalistas americanos a dizerem estas coisas da nossa comida…ah, que alegria.
Como se costuma dizer, tardou mas arrecadou
Espero que o menino, que agora deve andar pelos 40 anos, também tenha lido.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira