Expressões com história
Por Alice Vieira
Às vezes, sabe-se lá porquê, ouvimos expressões engraçadas, mas se perguntamos o seu significado, a pessoa que as diz ri-se e raramente sabe. E, no entanto nada se diz por acaso.
Há dias, estava eu na esplanada da praia do sul aqui na Ericeira, a deliciar-me com o nevoeiro que nem deixava ver o mar, quando na minha frente passou uma jovem carregadíssima de embrulhos. Sorri-lhe e ela exclamou:
“Pareço o preto da Casa Africana não é?”
Continuou a andar mas virou-se para trás e ainda disse:
“Que eu nem sei o que isto quer dizer, a minha avó é que está sempre a repetir isto…”
Estive para lhe explicar, mas ela já ia pelo paredão fora.
Claro que, nestes tempos, só os mais velhos é que ainda sabem do que se trata—um boneco preto, carregado de caixas, à porta de uma loja na Baixa, chamada Casa Africana. Hoje já não há preto nem Casa Africana—e mesmo que houvesse, o politicamente correcto nunca deixaria que se dissesse tais coisas.
Um dia escrevi um livro-que me deu imenso trabalho…− exactamente a explicar donde surgem certas expressões. E lembro-me muito bem quando decidi escrever esse livro. Eu estava num café, e alguém exclamou:
“Caramba! Aquela é mesmo uma Maria-Vai-Com-As -Outras! “—e seguiu-se uma asneirola, que eu aqui não reproduzo porque estou a escrever num jornal sério.
Ri-me, e tentei explicar ao senhor o que aquilo queria dizer, mas ele não acreditou numa palavra que eu lhe disse. Para quem não sabe, aí vai a explicação: quando a família real vivia no Brasil, D.Maria I acabaria por enlouquecer e não podia ir sozinha para lado nenhum. Por isso tinha de andar sempre acompanhada. Daí o “Maria vai com as outras.”
Mas há uma expressão que as pessoas dizem muito e é perfeitamente normal, mas que eu aqui na Ericeira nunca sou capaz de dizer: “ficar a ver navios”. Para já, nunca vi navios aqui na Ericeira.
Mas sobretudo porque o único navio de que a maioria das pessoas velhotas cá da terra (e eu com elas) se lembra tem uma história muito triste.
Trata-se do navio “Angoche”, que em Abril de 1971 partira de Nacala em direcção ao Porto — e nunca lá chegou. O que foi que aconteceu—nunca se soube. Afundado, a tripulação — na sua maioria aqui da Ericeira — desapareceu toda sem deixar rasto. Eu ainda conheci alguns familiares, e tenho sempre na memória o sorriso de esperança de alguns deles, à espera que eles voltassem.
E 50 anos depois, ainda ninguém sabe o que aconteceu.
Digamos que foi o último mistério do Estado Novo.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira