Crónica de Alice Vieira | Espírito Natalício

Alice Vieira

Espírito Natalício
Por Alice Vieira

 

Os tios que me criaram eram fanaticamente ateus.

Por isso lá em casa presépios era coisa que não havia. Acho que fiz o primeiro presépio, já a minha filha teria para aí uns 10, 11 anos — um presépio muito revolucionário, com as figuras todas de cartazes nas mãos com estranhos pedidos, a saber “nem mais um anjo para as colónias” ou “Força, força, companheiro Jesus”, e assim por diante.

Hoje faço colecção de presépios e tenho quase 200, também com alguns muito estranhos, admito: S. José, a Virgem com o Menino bem apertado contra si — a fazerem surf… Ou outro com o Pai Natal deitado nas palhinhas, outro ainda que, para além dos pastores e dos Reis Magos, inclui também o Darth Vader e um fotógrafo à la minuta.

Mas voltemos aos tios.

Como o Natal era a festa da família, lá vinham as velhas tias e tios da terra que ficavam em nossa casa uma data de dias.  Iam todas as noites à segunda sessão duma revista do Parque Mayer, lugar que, como todos nós sabemos, teve sempre um significado muito natalício.

Eu era miúda e ficava em casa. A minha tia deitava-me — e eram eles a sair para a rua e eu a sair da cama para brincar. Aproveitava e ia ver as prendas que me tinham trazido e que eu só podia desembrulhar na noite de 25. Eu sabia na perfeição desembrulhar as prendas e depois voltar a embrulhá-las, sem ninguém perceber nada.

Quando eu via que era a hora de eles chegarem, enfiava-me na cama e estava tão bem a dormir que era um gosto ouvi-los, “como ela dorme bem! Nem acordou quando entrámos!”

No dia seguinte, na altura de ver as prendas, eu dava gritos de espanto e alegria ao abrir cada embrulho.

Depois cresci e essas coisas deixaram de ter graça, até porque tudo tem um tempo.

Mas se alguém encontrar por aí um presépio estranho (não vale ser igual a todos…) é só avisarem-me.

Boas festas!

 

Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia, sendo considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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