De hoje é que não passa
Por Alice Vieira
De repente aparecem-me notícias que me deixam quase em estado de choque.
Num dia deste mês—não digo qual, para não fazer publicidade—vai ser feita uma homenagem a …
- Ministra da Saúde?—Não.
- Médicos e enfermeiros?—Não.
- Professores e jornalistas?—Não
- Actores e músicos ?—Não.
Estão bem sentados?
Uma homenagem a Salazar, lembrando o 50º aniversário da sua morte.
Vai haver missa, almoço, conferência de um tenente-coronel de que esqueci o nome, moeda comemorativa.
Quando disse isto a um amigo, vagamente de esquerda, encolheu os ombros e disse:
–É a democracia.
Só não lhe dei um estalo porque não tinha luvas e podia apanhar o vírus.
E, porque estamos em democracia, vamos lá então fazer também uma homenagem ao Hitler, ao Mussolini, ao Franco, ao Pinochet e por aí fora.
Mas por acaso, nesta altura lembro-me sempre do Salazar.
Um dia de Agosto de 1968, o senhor caiu da cadeira (agora dizem que não foi de nenhuma cadeira, mas que estava na banheira, para o caso tanto faz.) Depois de visto por alguns médicos, lá o enfiaram no Hospital da Cruz Vermelha no princípio de Setembro.
Tudo o que era jornalista assentou arraiais à porta da Cruz Vermelha. Eu não, porque estava no início de uma gravidez muito complicada e não podia sair da cama.
Telefone mesmo ao lado—para atender o meu marido, que me ligava para aí de hora a hora, sempre com voz de caso e o mesmo discurso:
–Isto está mau…Não deve passar de hoje.
E eu feliz, a pensar que, quando a minha criança nascesse, o Salazar já cá não estaria. E no dia seguinte, outra vez a voz cava do Mário, e a mesma frase:
–De hoje não passa.
Sabe-se lá porquê, a D.Maria tinha-se tomado de amores por ele. Saía do hospital, vinha cá fora falar aos jornalistas, e dizia sempre:
–Primeiro aquele rapazinho…
Mas também ela não mudava o discurso: estava por horas
E veio Outubro, e veio Novembro—e todos os dias o Mário me ligava , a dizer o mesmo:
–Isto está mau… De hoje não passa.
E veio Dezembro…até que, em Fevereiro, os médicos acharam por bem mandá-lo para São Bento.
E lá foram os jornalistas para S. Bento.
E o Mário continuava na mesma:
–De hoje é que não passa.
Resumindo e concluindo : a minha gravidez complicada chegara a bom porto—e a minha filha Catarina nasceu; e voltei a engravidar—e o meu filho André nasceu.
E o “não passa de hoje” demorou dois anos, e foi o tempo de os meus dois filhos nascerem.
É das coisas que mais me irritam: que os meus dois filhos tenham
nascido ainda com o Salazar vivo.
E é por isso que nesta altura me lembro sempre dele.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira