Caracas, há 14 anos
Alice Vieira
A actual situação na Venezuela tem trazido à minha memória aqueles dias de 2004 em que aterrei em Caracas, convidada pelo Instituto de Cultura Portuguesa para falar no 10 de Junho.
Eu nunca tinha visto um aeroporto assim, as malas batendo umas nas outras, e funcionários tentando equilibrar-se pelo meio dos corredores rolantes, pegando nelas e perguntando, aos berros, a quem pertenciam, e atirando-as a quem afirmasse, também aos berros, ser o dono.
Se não fosse ter aparecido o Sr. Daniel Morais (anjo da guarda de todos os portugueses em Caracas, os quais, depois da sua morte, se devem ter sentido completamente órfãos), não sei como teria de lá saído.
Mas , horas depois, lá saí.
Cheguei ao hotel, abri a mala—que estava completamente virada do avesso. Os sacos dos artigos de higiene sem nada lá dentro. O estojo das canetas aberto—e das canetas nem rasto.
Uma caixa pequena onde levava uns brincos e anéis também aberta—e dos brincos e anéis nem rasto.
Claro que era tudo bijutaria barata, mas não é isso que está em causa.
Durante toda a semana que estive em Caracas, nunca consegui entender a cotação da moeda, que de manhã era uma e à tarde já era outra.
E toda aquela terra me parecia surrealista—desde o passeio pelas ruas da cidade sempre acompanhada pela Miss Cabrillo, de faixa e coroa na cabeça, como se tivesse acabado de sair do concurso de beleza, até aos programas de rádio onde me levaram, com a jornalista (?) a misturar publicidade pelo meio da nossa conversa, com o ar mais normal do mundo, tipo “quando vai embora? Para a semana? Que pena, assim não poderá participar na semana de promoção do Restaurante X , com preços incríveis ao jantar!”
Mas isso, a gente ria e passava.
Coisas mais graves aconteciam.
Chávez estava no poder .
Lembro-me de me terem levado a um comício e de o ter visto a segurar uma imagem de Nossa Senhora garantindo que era o seu enviado na terra—e o que aquela gente aplaudia!
Um dia, com a tarde livre, lembrei-me de sair do hotel e dar uma volta pelo meio de um largo ali perto quando, de repente, um braço me arrasta dali para fora : sem que eu desse por isso havia pró-Chavez de um lado e anti-Chávez do outro, que não tardariam a envolver-se em confronto. E eu, calmamente, a atravessar pelo meio…
Ordenaram-me que nunca mais saísse do hotel sem que me viessem buscar.
Arrastava-se uma interminável greve do lixo, que dava um cheiro nauseabundo à cidade
Uma vez ia no carro com o braço de fora, e logo o condutor me avisou que o retirasse rapidamente para dentro, se não queria que me roubassem o relógio.
Nunca me senti tão mal numa cidade—mas fiz por lá alguns amigos, muitos deles já a salvo cá por Portugal, mas outros que lá estão e me dizem que não sabem o que fazer à vida.
E o pior, e o mais estranho é que ninguém sabe.