AINDA O 25 DE ABRIL…
Alice Vieira
O dia 25 de Abril já lá vai .
Como sempre acontece nesta altura, várias escolas chamaram-me para que eu falasse aos alunos sobre esse dia único de 1974, que para mim foi ontem e para eles na pré-história.
Lá vou, levo provas de censura do “Diário de Lisboa” para lhes mostrar, tento animar a discussão. Mas não é fácil.
Porque, na esmagadora maioria dos casos, este é um assunto de que estão a ouvir falar pela primeira vez. O que me assusta um pouco.
–Então o que é que aconteceu no da 25 de Abril de 1974?—perguntava eu a um grupo de alunos do 8º ano duma das últimas escolas onde fui.
Silêncio. Uns a olhar para trás, outros a dar cotoveladas aos do lado, um ar de riso em todos.
Até que uma se aventura:
–Foi a queda do regime sa…sa….sa… ai como é?
–Salazarista—digo eu.
–Isso !
E todos riem.
Incluindo professores.
Mostro as provas de censura da visita do Papa Paulo VI a Fátima—todas as notícias cortadas, incluindo a fotografia da sala onde ele iria repousar uns minutos, porque o Papa, que anteriormente recebera no Vaticano os líderes dos movimentos de libertação africanos , fizera muita questão de sublinhar que vinha apenas a Fátima.
Não reagem.
Mostro as provas de censura da visita da princesa Grace do Mónaco, só porque ,numa parte do texto, o jornalista dizia “Grace, filha de um antigo pedreiro…” Uma princesa, mesmo que fosse de um principado minúsculo como o Mónaco, não podia ser filha de um antigo pedreiro. ( Por acaso o antigo pedreiro era milionário, mas isso não interessava)
Não reagem.
Mostro as provas de censura de uma viagem do Presidente da República, onde se escrevia: “O Presidente Américo Tomás deslocou-se ontem a Freixo de Espada à Cinta, para inaugurar um fontanário.”—e onde a razão, ridícula, da visita fôra cortada.
Não reagem.
Falo dos telefones sob escuta—e daquela manhã em que eu tinha ligado para uma tia a dizer-lhe que ia levar-lhe uns bolos que eu tinha feito e de que ela gostava muito. “Os russos já aí vão””—disse eu. ”Russos” era o nome dos bolos, claro..À porta estava a polícia, que me levou para a esquadra, a querer saber onde estavam os russos, inimigos da pátria.
Não reagem.
Não acham bem nem mal. A censura , as prisões, não se poder falar livremente em sítios públicos, os telefones sob escuta –são coisas que nem entendem. O que, num certo sentido, até podia ser bom, mas que, como sinónimo de desconhecimento, alheamento e indiferença, é muito mau.
As professoras não dizem nada. O que prova que nem minimamente os prepararam para este encontro.
Até que uma delas, de repente, fala do seu tempo de criança. E de como os pais, que lutavam contra a ditadura, tinham muito cuidado no que diziam na sua frente, com medo que ela, apenas uma crianças, fosse depois contar às outras pessoas. E outra professora fala da Rádio que se ouvia muito baixo e às escondidas. E outra fala das pessoas que se acolhiam na sua casa antes de darem “o salto”.
E eu fico sem saber o que dizer.
Gente com uma tão rica experiência de vida—e que não a transmite aos seus alunos?
À saída, falo-lhes disso.
Abanam a cabeça.
Para quê?–dizem . “Eles nem entendem de que é que que lhes estamos a falar…-“
E uma diz que uma vez, há muito tempo, ainda tentou– e logo lhe apareceu na escola uma mãe a protestar, porque ela estava a fazer política nas aulas.
Nestas alturas lembro-me sempre de um padre meu amigo, desses tempos em que o 25 de Abril ainda vinha longe, que um dia foi chamado às autoridades porque, nas suas homilias, falava sobre a guerra de África—e isso, diziam-lhe, era fazer política.
E ele só perguntou:”E se eu calasse, não estava também a fazer política?”
Eu sei que o 25 de Abril já passou, as comemorações, os discursos, os cravos na lapela, essas coisas.
Mas seria muito bom que, durante o ano lectivo, sem data marcada, os alunos, nas suas escolas ouvissem falar destas coisas.