AGOSTO EM LISBOA
Alice Vieira
Neste Agosto lisboeta parece que toda a gente desapareceu da cidade. Pelo menos da minha rua.
Cafés fechados, restaurantes fechados. Amigos e netos
longe. Um deserto.
Às vezes , para espairecer, limito-me a sair de casa e andar a dar voltas ao quarteirão.
Voltava eu para casa numa tarde dessas quando ele apareceu na minha frente, sorrindo:
–Posso dar-lhe uma palavrinha?
Até tremi.
Normalmente quando alguém aparece na minha frente e me aborda dessa maneira, é para me prevenir de que o mundo vai acabar, e de que se avizinham inevitáveis desgraças, já previstas nas Escrituras, nós é que andamos por maus caminhos e não percebemos os sinais, e fazem logo uma data de citações.
Se a gente não atalha de imediato
“muito obrigada, desculpe, estou com pressa”
são capazes de estar horas a falar.
O significado de “palavrinha” muda muito de pessoa para pessoa.
Mas aqui não era o caso.
O senhor não previu o fim do mundo, nem anunciou desgraças de maior, nem fez qualquer citação.
Levou apenas a mão ao bolso do casaco.
Viciada em episódios do Fox Crime, pensei
“vai tirar uma pistola e dar-me um tiro.
Mas, em vez de pistola, o senhor tirou do bolso uma carteira
“vai-me pedir troco para o parquímetro! “
e, da carteira, um cartão de visita, que me passou para as mãos.
Apenas um nome e uma morada.
Um nome próprio não muito habitual –Natalino—e uma morada que o dava a viver por aqui.
Antes que eu possa responder seja o que for, já ele me vai tranquilizando, não quer nada de mim, absolutamente nada, ou melhor, quer, quer uma coisa que ninguém lhe dá: tempo para conversar.
Nem tenho tempo para lhe dizer que também é isso que acontece comigo já ele me começa a contar a sua história.
Viúvo há meia dúzia de anos, vivia agora em casa do filho, que insistira em trazê-lo da aldeia para Lisboa, para ele não estar sozinho.
O pior é que o filho e a nora saem muito cedo para os empregos, o neto vai para a escola—e agora em Agosto foram todos passar férias à Disneylândia, mas disseram-lhe que ele de certeza não iria gostar e ficaria melhor em casa
E lá ficou ele enfiado num nono andar de um prédio, num bairro onde não conhece ninguém.
E onde—acrescentaria eu, se ele me deixasse falar…–está tudo fechado.
–Se estivesse lá na terra—diz– ia ao café, ao centro de dia, gente para conversar é que não me faltava. Mas o meu filho diz que é um perigo eu viver sozinho…Que está muito mais descansado comigo lá em casa… O meu neto ainda tentou ensinar-me a mexer lá na internet, para eu me distrair, mas sabe como é, a gente nova tem pouca paciência para velhos, e eu…
Dá um longo suspiro.
–…e eu não sei conversar com máquinas. Não sei. O meu filho e o meu neto são capazes de estar horas seguidas ao computador e parece que não sentem falta de mais nada Mas eu já estou velho para mudar ,e preciso da voz das pessoas, dos olhos das pessoas, até mesmo do silêncio das pessoas. Por mais que me esforce, não consigo falar para um vidro.
Ainda não consegui dizer nem uma palavra, contar-lhe que eu também sinto a falta de gente neste Agosto vazio.
–Sr. Natalino…–arrisco
Mas ele nem me dá hipótese.
Volta a levar a mão ao bolso e desta vez tira um molhe de fotografias.
–Posso mostrar-lhe o meu neto?
Vi as fotografias do neto em pequenino e em grande, do filho em pequenino e em grande, e da nora, esta só em grande
De repente põe tudo de novo no bolso, as fotografias, a carteira, leva a mão ao chapéu em jeito de saudação e diz:
–Foi muito bom conversar consigo! Uma pessoa é logo outra coisa.
Abana a cabeça e murmura:
–As máquinas não servem para nada…
Eu não disse uma palavra—mas ele lá se afastou com um sorriso como se eu tivesse falado com ele horas e horas.
Mesmo em silêncio, uma pessoa ainda vale mais do que uma máquina.
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Alice Vieira.
É uma palavrinha que desenvolve um discurso onde oculta a sua solidão.
Ao conhecer quem é, atreve-se a preencher um pequeno espaço de tempo, equivalente à duração do dia.