A minha biblioteca
Por Alice Vieira
As tias que me criaram tinham uma paixão mórbida pelos mortos. Em vida podiam ter sido uns trastes—morriam e transformavam-se em santos.Elas até tinham um irmão a que não falavam— depois de morto, iam todas as semanas ao cemitério pôr-lhe flores na sepultura.
Ah, e ninguém da família podia morrer num hospital! Assim que estavam muito mal, iam para nossa casa.
Sempre me lembro de haver, no quarto ao fundo do corredor da minha casa, um tio doente.
Muito doente.
Moribundo.
Morto.
Então desmanchava-se a mesa da sala de jantar,as tábuas iam para a cozinha e no lugar da mesa punha-se o caixão do morto. Abria-se então a porta da rua e as pessoas iam entrando.
Eu adorava ter um tio morto em casa. Um tio que podia nem ser tio, e que, na maior parte dos casos, nem nos era nada. Estava morto e isso era o suficiente.
Ninguém me ligava nenhuma, eu podia ir para a cama tardíssimo e sem lavar os dentes
Para além disso, todas as pessoas que vinham velar o morto me traziam um livro — para eu estar sossegada no meu canto. Devo a minha paixão pelos livros a toda essa legião de tios-tias-primos-desconhecidos. É verdade que todos esses livros têm dedicatórias estranhas.
“ Com um beijo da tia Marta,
já que o tio António não to pode dar”
“No dia da morte da tua prima Henriqueta, que tanto gostava de ti “
“Quando abrires este livro lembra-te sempre do teu padrinho Jerónimo, que morreu ontem”
Quando os livros foram parar às mãos dos meus filhos, eles só perguntavam, “mas quem são estes?”
E eu respondia “por acaso também gostava de saber…”
E eles olhavam para mim, pensando que eu tinha ficado maluca.
Alice Vieira
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira