Crónica de Alice Vieira | A IGNORÂNCIA QUE ANDA POR AÍ

Alice Vieira

 

A IGNORÂNCIA QUE ANDA POR AÍ
Por Alice Vieira

Aqui há tempos na esplanada da praia do Sul, na Ericeira, um casal jovem sentou-se na mesa ao lado da minha. Depois de algum tempo em silêncio, de mãos dadas, a olharem para o mar, ele pergunta:
“ Por que é que hoje não se come carne?”
“ Ouvi dizer que era porque que hoje é dia da Quaresma””
“E que é isso? “
“Sei lá. Parece que é um ritual que existe na China”

E a conversa acabou, ambos muito bem informados.

Ó meus amigos, tenho a certeza de que vocês pensam o mesmo que eu : não é preciso ser católico para sabermos estas coisas! Isto é aquilo a que se chama “cultura geral”. Assim como não é preciso ser francês para sabermos que a capital de França é Paris.

É muito comum ouvirmos como desculpa da ignorância, nos concursos de perguntas e respostas (como no ”Porquinho Mealheiro” da RTP-1, por exemplo) “ não sou desse tempo”. Eu também não sou do tempo de D. Afonso Henriques mas sei que ele existiu, foi rei de Portugal e dava sovas na mãe. E até já escrevi um livro sobre o senhor.

E penso que as pessoas, mesmo não sendo católicas, mesmo sendo ateias, sabem quem foi Jesus Cristo, o que significa o Natal e a Páscoa, o que é a Bíblia. Mas se calhar estou a ser muito optimista.

A verdade é que o pessoal mais novo (aquilo que, na língua que se fala no Porto, se chama “a canalha”) cada vez sabe menos.

Lembro-me de, no dia do enterro de Mario Soares, os repórteres da televisão irem para a rua perguntar aos mais novos se sabiam quem tinha sido Mário Soares. E os alunos da faculdade respondiam, “parece que foi um tipo que se meteu na política”.

É claro que isto não se ensina na escola —mas basta andarmos atentos ao que se passa, ao que vem nos jornais (está bem, hoje também já ninguém lê jornais), ao que a televisão diz, para não fazermos estas figuras triste. Até mesmo ao que se ouve nas ruas ou nos cafés. Quando eu trabalhava no Diário de Notícias, eu ia sempre a pé para o jornal e, pelo caminho, entrava num café para a bica da praxe. E quando chegava ao jornal dizia “só com o que hoje ouvi já escrevia uma data de histórias”.

E era verdade. Mas hoje as pessoas que andam na rua parece que são surdas.

De qualquer modo—desculpem lá a insistência—essa de a Quaresma ficar na China acho demais.

Mas se calhar sou eu que sou muito exigente.

Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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