Crónica de Alice Vieira | A felicidade das doenças

A felicidade das doenças
Alice Vieira

 

Os autocarros são o ponto de encontro de todas as mulheres doentes de Lisboa.

Mesmo que anteriormente vendam saúde, chegam ali e zás!, ele é o reumático, ele é o fígado ,ele são os rins,  ele são as insónias, ele é o coração, ele são os nervos, ah, sobretudo os nervos!

Não há como uma bela doença (normalmente  acompanhada por uma série de análises “que nunca dão nada, dizem eles, mas eu é que me sinto”) para estabelecer uma onda de solidariedade entre quem vai sentada e quem vai de pé.

Não sei porquê, mas os homens nunca  entram nesta anedota. Olham para elas em silêncio, às vezes encolhem ligeiramente os ombros, teclam no smartphone para disfarçar, mas não mais do que isso.

Nunca ali ouvi um homem queixar-se para outro homem das doenças que tem.

Ali, doença é  património feminino.

E então os autocarros transformam-se numa espécie de sala de espera de um centro de saúde ambulante, onde o médico nunca chega e a consulta acaba por ser desmarcada, e cada uma refila, mas depois desce na sua paragem, se não curada, pelo menos muito mais reconfortada.

O pior é quando, no meio de toda a desgraça, surge alguém saudável —  ou, pelo menos, relativamente saudável pois, como logo alguém se encarregará de explicar, saudável, saudável nunca ninguém está.

Foi o que aconteceu comigo, há dias, na carreira do 54.

Eu não queria ser desmancha-prazeres, palavra que não queria, mas o dia tinha-me corrido bem, logo pela manhã a médica dissera-me que os tratamentos que eu andava a fazer tinham terminado, para além disso tinha conseguido passar uma tarde inteira sem e-mails apocalípticos sobre as decisões do governo e dos dirigentes do futebol, sem correntes tipo e-se-não-mandares-isto-a-80-amigos-engordas-20 quilos- a- tua-melhor-amiga-rouba-te-o-homem-e-o-Centeno-apanha-um-balázio, encontrara um amigo que não via desde a minha juventude e me enchera de mimos—enfim, doenças era aquilo que eu mais queria longe de mim.

De resto, talvez por ter vivido muitos anos entre tias sempre à beira da morte (e que, evidentemente, morreram todas saudavelmente para lá dos 90), para quem o maior insulto era alguém dizer-lhes “ está hoje com melhor cara!”– nunca tive paciência para quem passa a vida a lastimar-se.

Às vezes, se calhar, concordo, até sou capaz de exagerar um pouco –o que leva a minha filha a dizer-me, quando me  acompanha a qualquer consulta, “ó mãe, não te rias,senão eles não te levam a sério”.

E, não sendo eu sequer do género de meter conversa em autocarro, de repente dei por mim a dizer em voz alta

“muitas vezes as doenças estão é na nossa cabeça.”

Para abreviar a história, digo apenas que saí duas paragens antes, para a discussão não azedar o ambiente mais do que ele já estava : eu cometera o sacrilégio de abalar a profunda convicção de todas elas, de que só na infelicidade é que se pode ser feliz.

Garanto : se olhar matasse, eu não tinha saído dali viva.

 

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