A correr, a correr
Por Alice Vieira
Como muito bem sabem os que me conhecem, tenho uma (quase ) obsessão pela pontualidade. O meu marido costumava dizer que eu devia ter tido um antepassado inglês. Se calhar…
Lembro-me sempre, estava eu ainda no Diário de Notícias, de estar à espera de alguém que me devia levar a uma biblioteca de Sines, para um encontro com os miúdos das escolas, que devia começar às 10 da manhã.
Claro que às 9.30 já eu estava à porta. E vieram as 10, e as 10.30, e as 11, e nada. Faltava pouco para o meio dia quando finalmente o senhor apareceu. Calmo, sem pressas- e eu a ferver, “ está a ver que horas são? Era suposto lá estarmos às 10!! Vamos lá !
Entramos no carro, e de repente o senhor desata num estranho discurso:
“A senhora está com pressa?”
“Claro que estou com pressa! “
“Não. A senhora não está com pressa, quem está com pressa é a directora da biblioteca. Mas a directora estará mesmo com pressa? Não, ela está com pressa porque se não estivermos a horas as mães levam os miúdos para casa. E as mães dos miúdos estão com pressa? Não, mas se os miúdos não vierem à hora do almoço a casa, o almoço tem se ser servido mais tarde e o marido está com pressa.E o marido está com pressa? Não, mas se não chegar a horas o patrão vai obrigá-lo a sair mais tarde porque é preciso entregar aquele trabalho ao cliente. E o cliente está com pressa? Não, mas…”
E por aí fora até rematar com um grande suspiro:
“Neste mundo, andamos todos pela pressa uns dos outros.”
Devo dizer que chegámos tardíssimo, claro, mas ninguém pareceu importar-se muito.
E já que falamos de pressa e pontualidade, um dia, antes da pandemia, claro, acordei com uma enorme vontade de apanhar um cacilheiro e atravessar o Tejo. Há tempos que não fazia isso.
Vai daí, levantei-me a correr, tomei um duche a correr, vesti-me a correr, apanhei um táxi, saí do táxi a correr e dei um salto para apanhar o barco que já estava a sair.
Deixei-me cair no banco, estafada.
E só depois pensei, “mas por que é que vim a correr desta maneira? Ninguém me espera lá, ninguém me espera de volta, não tenho nada que fazer…”
E acabei por me rir. Estamos tão habituados a andar sempre numa correria, que mesmo quando temos todo o tempo do mundo, não o sabemos reconhecer.
Mas eu sou assim, não há nada a fazer.
E agora vou a correr para a praia.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira