Crónica de Alexandre Honrado
Uma estranha adrenalina
Ao espetar, cada vez mais firmemente, um dos eixos do compasso no plano irregular do estirador da minha vida, eu sabia que estava a correr um risco muito grande. Todavia, ao rodar o compasso e ao estabelecer a circunferência das opções, havia uma estranha adrenalina a percorrer-me, tão irresponsável como irrecusável: eu ia ser escritor. Geometricamente, o plano era perfeito – um conceito que se ia tornando mais apurado à medida que eu estabelecia a escrita como a consolidação de elos de ligações em cadeia, cabendo-me a tarefa ideal, romântica, de descobrir as matérias-primas (que no caso vão dos sentimentos a quem os produz, do mundo inorgânico às nuvens e às ignotas criaturas do espaço sideral inexplorado), sem me preocupar, pelo menos consideravelmente, com a colocação dos códigos de barras no ponto de venda final. O escritor cria; alguém o vende. É um destino.
De certa forma, já esperava a surpresa: um dia dei comigo a constatar que no rio da escrita, eu estava a montante, na nascente, na boca do caudal; e os anónimos leitores, aglomerados ou dispersos, a jusante, na foz, perto talvez do oceano de todas as possibilidades. Procurar que essa distância se encurtasse podia ser um perigo, um novo perigo, a enfrentar: lá se ia o fascínio que há por detrás dos símbolos. O escritor deve ser uma figura misteriosa, mesmo que a sua forma de escrita aposte na nudez de todas as palavras – que conduzem à exposição da alma, para quem nela acredita, ou da sentimentalidade, para quem ainda a consegue cultivar. O escritor deve ser o nome impresso, isto é: palavras – e não o homem (ou a mulher) que lhe corresponde.
Para manter vivo esse alter-ego – e sobreviver, entenda-se – fui-me mantendo paralelamente como jornalista (ou melhor, arranjei modo de fazer com que um irmão gémeo de infinita generosidade me sustentasse; de um lado, a autopreservação, que não consigo entender; do outro, o instinto da sobrevivência, pragmático, voraz).
Como escritor, habito manhãs claras. Mergulho em águas cristalinas onde os tubarões comem da minha mão estendida. Como escritor, deixo-me habitar pela transcendência: e sou um pequeno deus. E gero a vida e disponho a morte e mando ressuscitar e lavo a honra perdida do convento e frequento os bares de múltiplas galáxias. Como jornalista, atendo telefones em manhãs cinzentas, balouço nas traseiras de velhas camionetas antagónicas, luto, no lodaçal das mentiras, pelo vislumbre de uma ponta que estabeleça menos caos na meada de embaraços.
Como escritor potencio a inocência. Como jornalista não acredito em ninguém, verificando que o mundo é uma espécie de sapato incapaz de moldar o pé que teima em apertar.
O traço perfeito, geométrico, imposto pelo compasso com que desenhei as minhas opções de vida, impõe-me que fale do amor e da felicidade, e da catarse que lhes está inerente. Como escritor, sucumbo ao amor, mesmo quando não o uso na produção da escrita; sinto-me invadido pelos sacolejões sísmicos da felicidade – só sou feliz verdadeiramente quando escrevo? Isso exige de imediato que pare de escrever e me psicanálise…
Em contrapartida, não cabe o amor nem a felicidade na atitude corporativa do jornalista – mesmo que ponha as emoções à flor da pele, o reduto é um imperativo categórico que não salta as barreiras rígidas do sentir.
Ah! Falta falar, de raspão, da metodologia e da disciplina. O escritor não se subordina à metodologia. Não tem horários nem precisa de uma paisagem rígida para a sua inspiração. Em contrapartida, o jornalista exige que a hipocrisia do mundo esteja ativa e que o labirinto das contradições e das metáforas o desafie até que se perca ou saia para a luz da notícia. É um diálogo incomum e fratricida, que quase leva o escritor a esganar o jornalista. E vice-versa. Ódio entre gémeos, o mais cruel e simétrico, como um traço de compasso…
Falta o essencial da estratégia. Mas agora não; preciso de ligar o computador e pôr-me à prosa. (Para o escritor, contacte 24 horas por dia; para o jornalista, das nove às 17.
Alexandre Honrado
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