Crónica de Alexandre Honrado
Um tema como os outros
Já escrevi sobre cemitérios e já acrescentei muitos cemitérios à minha vida. Sei que é mais comum do que eu imaginava, outros somam mais cemitérios do que eu, por vezes dou comigo a conversar com os cemitérios dos outros, a trocarmos lágrimas que secaram em imensos pântanos nunca estagnados, a tratar os mortos como roupa resgatada de um baú, a imaginar histórias que por vezes ninguém viveu. Esses momentos fazem-me celebrar a vida com maior intensidade, e explicar-me o quão injusta é a biologia, que nos leva cedo, mas também o que de nós sofre com o que politicamente nos é imposto e dado a viver.
Napoleão Bonaparte entra nesta história. Ele, e os políticos pós-revolução francesa de 1789, tocados pelo laicismo, que acharam que os mortos tinham de ter novo estatuto e que chegara a hora de evitar que os ricos tivessem sepulturas ao lado das igrejas e os pobres meras valas comuns, um pouco onde calhava. Vai daí criou-se o cemitério de Pére Lachaise, um dos lugares que visito em França, pois constitui matéria profunda e prolífera para aquisição cultural e matéria crítica de muitos pensamentos.
Pére é pai, em português, aqui referindo o padre jesuíta confessor de Luís XIV, o rei Sol, e Lachaise, em tradução apressada, é a cadeira, ou mesmo a cátedra, o que lhe dá um elevado tom professoral e eminentemente académico.
O cemitério Pére Lachaise foi criado num terreno amplo que havia sido propriedade dos jesuítas – e os franceses não se interessaram pelo novo espaço durante anos, até que ali foram sepultados dois vultos maiores da cultura francesa: Molière e La Fontaine (já agora: nome que traduzido à letra equivale a Fonte). Pére Lachaise transformou-se então na pequena cidade dos mortos ilustres. Burgueses disputavam a honra de transportar para ali os seus familiares e subitamente o local tornou-se o espaço de enterramento de filósofos, compositores, pintores, militares com carreiras consideradas distintas….
Quem tem o hábito de viajar, nem que seja apenas nas palavras, ou em filmes (o cineasta brasileiro Sérgio Tréfaut, dedicou-lhe um documentário especial) há de conhecer El Arafa, outra Cidade dos Mortos, esta no Cairo, que é a maior necrópole do mundo. Ali vive mais de um milhão de pessoas dentro do cemitério, habitando dentro ou à volta de mausoléus. Na cidade há de tudo: padarias, cafés, escolas, e enterros todos os dias.
Em Portugal, só a Primeira Guerra Mundial veio democratizar os cemitérios, pois no nosso país erguiam-se muros dentro desses espaços, para separar ricos e pobres. As políticas da memória resultantes desse terrível conflito mundial alteraram práticas e mentalidades – mas os vestígios memoriais foram desaparecendo e hoje não se evoca o acontecimento, pois tornámo-nos habitantes de hábitos amnésicos.
Nos primeiros anos do século passado, mortes por fome, por peste (a peste voltou no final do século XIX, em especial ao Porto), por tuberculose, por gripe, por pandemia, por efeitos diretos e indiretos da Grande Guerra, por golpes de Estado e levantamentos em armas (como são alguns exemplos: o 5 de outubro de 1910, o 14 de maio de 1915, o 5 de dezembro de 1917, o 19 de outubro de 1921, o 28 de maio de 1926…).
Em França, ainda resiste entre os lugares funerários e memoriais da I Guerra, o cemitério militar português de Richebourg e nele mais 1800 campas, das quais 200 anónimas, guardando os restos mortais dos soldados portugueses caídos em combate. Ainda hoje há quem visite os sítios cristãos clandestinos de Nagasáqui, no Japão, onde comunidades missionárias ibéricas tiveram papel determinante. Muito haveria para contar, e até conto, quando às vezes cruzo lágrimas que secaram em imensos pântanos nunca estagnados, iguais a tantas outras que se negam a morrer.
Alexandre Honrado
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