Crónica de Alexandre Honrado
Um observatório de pouca coisa
Cada pessoa que conheço revela-se para lá do que é. Talvez admita que é isso afinal o labirinto da sua intimidade, reforçando a minha convicção de que a identidade é uma ideia oca, porque a seu modo todos somos moldáveis, física, psíquica e espiritualmente mutantes, prisioneiros de ambições mais ou menos fantasiosas ou sofredores de crenças várias que moldam, mas não explicam, fornecem matéria de extrapolação, mas não identificam, muito menos uniformizam ou garantem uma identidade. Vamo-nos identificando, mas isso está longe de fortalecer um pedestal a que se possa chamar identidade. Deram-nos um nome à nascença, pouco depois um número de identificação, um país para viver até ver, pois nada é assim tão definitivo, uma língua, que nunca chegamos a dominar perfeitamente, a tal bandeira, cheia de símbolos que não sabemos identificar, um hino de que só sabemos as primeiras estrofes e que teimamos em cantar mal, conjugando mal, esquecendo o seu significado e desconhecendo em absoluto o significado de algumas das palavras que o compõem. E afinal, tudo o que nos deram não foi dado e lá estafamos a pouca vida que temos conquistando a pouca vida que devia ser a nossa. Nem o corpo é uma identidade, afinal: mudamos de corte de cabelo, de cor de cabelo, rapamos o cabelo, fazemos o que queremos à cor dos olhos, operamos partes do corpo que antes eram o que éramos para passarmos a ser uma coisa qualquer que é o que passaremos a ser. A lista das mutações é infinita. Com isso procuramos adaptarmos aos “ecossistemas” que nos rodeiam e desafiam, procurando, mesmo inconscientemente, que nos adotem e alimentem, órfãos de melhor logo à nascença.
Talvez de apanhar tanto sol nos últimos dias, dentro e fora de portas, a observação do humano torna-se, para mim, mais intensa. Um dos meus amigos partiu há um par de dias para a Ucrânia e quando lhe perguntei porquê, respondeu-me apenas: Tem de ser. A vida é um sopro.
Nem eu, nem aqueles que me rodeiam sabem bem quem são, de onde vieram – para onde vão. O ser humano sempre desconheceu as suas origens: uns agarram-se à ilusão de terem sido criados por um deus, o que é arrogante e ambicioso, e admitem que alguma coisa extraterrestre os colocou neste planeta (sim, todos os deuses são extraterrestres). Outros estão convencidos de que descendem de um outro animal, o que talvez explique este ser que somos hoje, homo homini lupus, o homem que devora o homem (aplica-se a qualquer género) e que tem na cultura do confronto e da agressividade a sua conduta mais definitiva, tão obscura como assustadora. Não esqueço que ensinar a agressividade às novas gerações não cria seres competitivos, mas agressores.
Aproveito o sol e assisto a discussões disformes e repulsivas. Não é a identidade humana, isto, nem sequer os novos universos culturais compostos por círculos fechados de pessoas que parecem de acordo entre si me explique este triunfo da bestialidade, este torvelinho de inconsciência, este tsunami de acefalias. A verdade é que nenhum de nós pode ser compreendido a partir de si mesmo – se o fosse, então, existiria qualquer coisa como uma identidade robusta e inquebrável. Observo os outros, debaixo do sol escaldante, com a vontade suprema de um dia conseguir observar-me.
Alexandre Honrado
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