Crónica de Alexandre Honrado
Texto de Ano Novo
Aqui é sempre chuva na areia, digo eu que vejo as marcas de outros passados. Longe de mim recordá-los com saudade, pois sei que saudades só do futuro se for o que aí vem em escala intensa.
As metáforas ficam nas marcas da chuva e recordo com intensidade figuras amáveis que me abriram os braços, recolhendo-me, algumas querendo ensinar-me coisas do acreditar e do querer, embora inutilmente – que sempre fui muito convicto e rígido nas minhas coisas de sentir. Mesmo assim, coleciono essas figuras, já o disse: fora da saudade. A galeria é brilhante e avisa-me, mas teimo em que a saudade é um perder de vista, o barco de proa festiva que mesmo assim se transforma em ponto no horizonte.
Este texto pode parecer embaciado, amarelecido talvez, mas tem as suas vantagens. É um texto meu e atrever-me a partilhá-lo é atirar serpentinas ao vento. Mais: tem compassos levemente atrasados, para que nele se oiçam velhas canções de trabalho a resistir. Outras de embalar. E é o resultado óbvio dos dias que passaram recolhendo-se, abrindo as portas a um outro ano e a novos dias. Oiço nele uma espécie de blues com a sua espiritualidade animada ou um jazz adaptado aos novos dias, com a sua mistura de tradições e esperanças. Uma voz de mulher, coros mistos e flagrantes, também os oiço.
Despeço-me do ano enquanto os chacais uivam e as hienas choram. A minoria absoluta nunca esteve tão azeda e a sua velha estrutura de mentiras e calúnias cresce como o cato venenoso que se atreveu a engolir o vento e a crescer no deserto com a raiva no ventre. Aqui é chuva na areia, como me mostrou aquele grande homem que gesticulava comigo, enaltecendo-me nas pausas por cortar o cabelo com frequência e não ser mais um barbudo na paisagem. Mas aqui é também a intensidade do sol, que seca a chuva, que desgarra em verão. Mas aqui é também um lugar que eu sou e que reparto (apenas) com os eleitos.
Alexandre Honrado
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