Crónica de Alexandre Honrado
Sorte?
Há pouco, no adro da Igreja, encontrei-me com outros homens sem fé e discutimos se os deuses são gestores da sorte, que condenam à morte ditadores, os monges budistas, crianças inocentes, quem lhe estiver ao alcance.
Chamem-lhe costume ou superstição ou feng shui.
Imagina agora que lá fora estão a pintar as paredes com sprays desinquietos (dos artistas famosos aos empreiteiros, todos queremos deixar a nossa assinatura) e eu aqui, à espera da sorte, deitado em cima do pano verde das apostas, a escutar a tua voz de sopros rituais.
— Façam o vosso jogo!
Aqui deitado pratico o jogo urbano da moda. O parkour! Salto os obstáculos mais incríveis, os mais difíceis: todos radicam na minha memória.
Sou um homem de sorte?
Nasci de cesariana – é a sorte dos iniciados. A mãe dorme, a criança nasce, o homem sonha…
Cresci de bisturis apontados aos pulmões (os ataques de asma são incomparáveis… Che Guevara sabia-o, mas não chega para justificar o uso, agora, de uma t-shirt com o seu rosto serenado). Infância? Uma espécie do Canto de Amor e de Morte do Fernando Lopes Graça. Não há dúvida: sorte!!! Eu tive sorte. Como o vigia de baleias que viu o mar a borbulhar e testemunhou o nascimento de um vulcão.
Sorte por ter lido o que li (a asma senta-nos, imobiliza-nos, abre-nos potencialidades e horizontes insuspeitados). De Kafka a Lewis Carroll, de Sartre a Dostoievski.
A primeira memória literária que tenho… A prisão de Arrabal, em Madrid (eu era tão menino). Isso é sorte — ter sido menino, quero eu dizer…
Tudo é um autorretrato.
Tudo é um diário.
Sorte — ser um colecionador de sonhos…
Duas coisas enchem-me o ânimo de admiração e respeito: o céu estrelado acima de mim e a lei moral que está em mim.
Alexandre Honrado
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