Crónica de Alexandre Honrado
Sintomas do que temo
Há um encanto vago em ficar num lugar sem distinções, parar apenas e ficar a gozar a brisa, o sol que parece desconhecer como o ser humano alterou o planeta de maneira assassina, dourando a pele e aquecendo suavemente em esquecimento.
Há um deleite nesse momento sem tempo, sabendo que mais tempo virá escoando-se, o tempo cai sempre num funil apertado e foge-nos como o passar assustado, a criança esquiva, o amor que não ficou.
Não tenho muito para dizer nesses momentos vagos mágicos. Nem tenho o que escrever deles.
Sobra-me espaço e, todavia, o espaço nunca sobra.
Abro os braços como uma estátua famosa, penso em voar, mas aterro sem sair do mesmo lugar, estou de férias nesses segundos. Intensamente ocioso. Deliciosamente nada.
Um ruído agita-se ao longe, agita-me de perto. Vozes soltas falam do treinador malcriado que achou que as regras não são para se cumprir, outras vozes falam de um novo Cardeal de que muitos nunca tinham ouvido falar, outras ainda reproduzem o azedume do Presidente que, afinal, andou guardado e envergonhado como um quisto doloroso das vistas alheias, porque o que é azedo não é popular e os quistos nunca foram conquistadores da simpatia alheia.
Continuo a ouvir o silêncio daqueles que gritam desastradamente; é assim que oiço como a dez minutos de carro do magnífico palco milionário onde o Papa conviveu com os mais miúdos, oito famílias, com crianças e um idoso, viram as suas casas precárias serem demolidas (sim, no bairro do Talude, em Camarate, Loures).
As palavras chegam-me e são muito estranhas. Não devem querer dizer o que estou a ouvir, nem devem sequer trazer pelos ares verdades difusas e confusas. Deve ser mentira esse jogo, o das palavras perdidas. Uma chuva de confettis e pouco mais.
Há um encanto vago em ficar por alguns segundos a pensar que não sei pensar. Depois o afago torna-se estremeção e o estremeção é um violento terramoto. E depois só há escombros.
Talvez eu tenha adormecido por segundos e saído do pesadelo do costume. Talvez isto não seja um sintoma do que temo.
Alexandre Honrado
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