Crónica de Alexandre Honrado
Sem guerra nem guerreiros
Houve um momento neste verão em que, isolado de todos os contextos, vivi trinta e alguns segundos de uma paz indescritível, um silêncio casto, uma temperatura amena, nenhum sobressalto diante dos olhos, a ausência total de cheiros incómodos, uma superfície que ao tato me trouxe uma memória de infância numa época em que a ausência da compreensão do mundo era apenas a graça de nada compreender – ou querer.
Durante esses segundos de um bendito alheamento, senti-me longe de qualquer servidão (tendo em conta que nos tempos que correm a vida é o mergulho constante num estado permanente da servidão quase sempre voluntária), dei comigo a pensar quão privilegiado era eu se me comparasse, naquela exata passagem de tempo, com milhares de milhões de seres humanos incapazes de registarem nos seus destinos pelo menos uns segundos assim, de paz.
É claro que pensar nisso me devolveu à realidade e em catadupa chegaram as agitações habituais. Eis-me de regresso ao conflito, às dúvidas, aos dramas, às guerras! E essa palavrinha – paz – deambulou pela minha ansiedade, pensando no estado de guerra em que nos encontramos, todos, mesmo os que pensam “isto não é comigo”, rebentando de seguida a onda do mar com belos requebros de rins, maravilhosos golpes de cintura, perfeitas mariposas, bruços, crawl e coisas dessas de haver mar, ir e voltar.
O raciocínio pôs-me às voltas com uma definição decente para essa mesma, a paz, entendendo que é o contrário da guerra, pelo que pode ser muitas coisa, todo e qualquer impacto intruso que nos agite, empurre, desdenhe.
Estamos em guerra pela alimentação, pela água, pelos combustíveis, pelo sexo, pelo repouso, pela saúde, pela segurança, pelo conforto, pela independência, pelo cumprimento, pelo reconhecimento, pelo amor-próprio, pela agressão. Pelos valores que temos, que não temos, que perdemos. Até já há alguns entre nós que querem tirar a aprendizagem dos valores dos currículos do ensino, arreigados aos seus complexos provincianos que lhes impedem a mobilidade e a felicidade – um valor geral que também se aprende.
Sendo a guerra uma agressão, estamos todos em guerra mal o despertador nos violenta, ou a web nos manipula, o SMS nos chama, o telemóvel reclama, o e-mail nos adverte. São condicionantes da vida, essa coisa que julgamos ridiculamente poder dominar, nossa ou alheia.
Durante 30 e poucos segundos o meu reino não foi deste mundo. Ninguém me chamou às armas, nesse lapso.
Nada mais tendo a acrescentar, vou comprar uma revista, dessas que tenha secção de horóscopos cheios de predições. Talvez neles descubra se terei o dom de voltar a ter aqueles 30 e tal segundos sem guerra nem guerreiros, coisa fantástica no correr do marasmo habitual.
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