Crónica de Alexandre Honrado – Regra de distanciamento

Regra de distanciamento
Encosta-te a mim,
Dá cabo dos teus desenganos
    Por Alexandre Honrado

 

Não faço a menor ideia e até duvido se o período de confinamento trouxe alguma mudança, mesmo pouco ou nada radical, ao nosso mundo, aos nossos hábitos, à nossa formação cultural, cívica, civil, sentimental.  Talvez tenha abalado um pouco os nossos hábitos, o que por sua vez abalou muito as economias, é certo. A paragem foi demonstrando que o capitalismo que impera no nosso mundo é uma coisa muito oca, vã, superficial, e não nos dispensa mais do que 90 dias, findos os quais treme e colapsa, chamando-nos ao nossos postos, para fazer seguir o fluxo da riqueza alheia que tanto depende das nossas miseráveis prestações e força produtiva.

Não faço a menor ideia e até duvido que ressalte alguma coisa de mais positiva deste parêntesis fechado em torno de cada um de nós, esta simulação de penitenciária, essa prisão ao domicílio.

Não creio que tenhamos criado nem um grama de um mundo melhor, como não creio que terá nascido alguma coisa melhor para o mundo.

Respirou-se, é certo, um nadinha mais, com um nadinha de mais qualidade, poluiu-se menos, morreu-se menos na estrada, mas não nas guerras de novo formato. A propósito, as notícias do COVID-19 abafaram completamente Moçambique, Síria, Nigéria, Chade, Afeganistão, Somália, Iraque, Israel, Palestina, Iémen, República Democrática do Congo; perdemos o contacto com o Boko Haram, os Talibãs, o Hezbollah, nem reparámos que o principal financiador do grupo libanês na América Latina foi preso, na Foz do Iguaçu, no Paraná, e que o tráfico por isso sofreu um abanão, mas nem é notícia já que o terrível vírus nos bate à porta, logo a seguir ao estafeta que nos trouxe o almoço e ao outro moço que nos trouxe o estojo de cosmética que encomendámos pela Internet.

Já agora, se formos à procura desta gentinha na mesma Internet, esses dos atentados e do terrorismo, as páginas são pródigas em, ali mesmo, sugerir-nos alternativas, da compra de um vestidinho ao último modelo do telemóvel, e até à nova fórmula mágica para a remoção da cera do ouvido.

Não faço a menor ideia do que nos terá trazido o confinamento, o vírus, a enigmática sincronia com que o poder acerta o discurso em quase todos os países da Terra, quando o efeito mágico da emoção impõe esse tipo de tão estranhas alianças. Já não se trata apenas daquela incrível contração que nos faz acreditar que o mundo somos só nós, mas um aperto ainda mais intenso, que nos leva a perceber que o mundo nem sequer somos nós.

Entretidos por detrás das nossas máscaras, vemos o desfile das máscaras alheias. Ainda há um par de horas, a televisão do estado gritava – agora o jornalismo quando não grita é mera língua gestual – que o vírus se transmite pelo ar, coisa que não é notícia desde que nos sugeriram as tais máscaras que muitos não usam porque não estão para isso, porque são simplesmente ignorantes ou porque, como aquele puto que veio da holanda para o algarve, somos jovens e isso não nos preocupa.

Em resumo, somos tão brutos como os Neandertais de há 400 mil anos, com uma única diferença, somos menos resilientes.  E a intimidação terrorista não vem do animal feroz que nessa época percorria o mundo, esfomeado, mas de cada um de nós que se aproxima do seu próximo sem cumprir a regra de distanciamento capaz de salvar a nossa própria vida e do outro, com o qual, na realidade, nos preocupamos muito pouco.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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