Crónica de Alexandre Honrado
O tempo dos carrascos
O tresloucado balancé da História reserva-nos sempre curvas descendentes impostas pela mediocridade e pelo extremismo. Chegam disfarçadas, essas curvas, essas quebras, de fantasias, umas vezes políticas, outras religiosas, não se sabendo onde começam umas e outras, mas adivinhando-se a onde irão parar, a que fim se destinam: ao derramamento de sangue, ao torniquete imposto à inteligência, à censura, à repressão, ao retrocesso. Foi assim que se ergueram e esmagaram civilizações, incapazes de fazerem leituras da sua própria escrita de vida.
Encontramos exemplos disto no momento presente da confusão demente do mundo nosso contemporâneo, onde as democracias parecem desconhecer as respostas sábias que durante séculos as consolidaram e os ácaros que viveram à espera do momento de vingança saem dos buracos fétidos onde medraram e usam, já com infinito descaramento, todas as formas ao seu alcance para tomarem o poder e apertar nas mãos as rédeas que no passado foram suas com formato de forca e ódio solto.
Parece haver poucas exceções, do nosso Portugal tão ferido, à Itália que deu o terror ao mundo, ao Irão devorado por uma história incompreensível, à Rússia que procura um poder podre que os séculos pareciam ter sepultado…. Há muitos mais exemplos – e é um erro este, o de dizer Portugal, Itália, Irão, Rússia, porque há rostos hoje como existiram ontem, e não são os países, mas alguns dos seus filhos que traem os seus irmãos e os subjugam ou procuram subjugar. Devemos chamar as bestas pelo nome e interpretar o bestiário das transformações que nos querem impor.
Banalizámos a cultura, a história, o passado, a memória, os afetos – e o resultado está à vista: sentamo-nos com ar imbecil, com os nossos telemóveis bem seguros na mão, e porque os nossos polegares são ágeis, cuidamos ser senhores lestos do nosso próprio destino, sereias e tritões com troncos esbeltos, mas condenados a comer a própria cauda para parco sustento e nula estética.
Se pudéssemos fazer um exercício crítico da memória, melhor ainda, um uso crítico do que contém e nos pode eventualmente interessar, não teríamos guerra, fascismo, nazismo, imperialismo, racismo, segregacionismo de regresso e com uma intensidade pavorosa.
Se soubéssemos quem somos não desdenharíamos o que seremos. Não permitiríamos ser carrascos mentecaptos da nossa continuidade.
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