Crónica de Alexandre Honrado
O que escrever quando é inútil a escrita (dois)
Ao ser impossível a poesia – depois do triunfo da barbárie – a aceitação da derrota do Homem interior (aquele que descobre as vias da experiência interna, capaz da produção de leituras superiores de si, dos outros e do mundo que o rodeia, mesmo do intolerável), o homem ficar-se-ia pelo Real, impedindo o Irreal, ou o que, na sua capacidade de criar, permite suportar a realidade e vê-la de um modo elevado e amplo. Ou, por outras palavras, o combate entre o cruel real e o real metaforizado, sendo que o Real da história é o que resiste à historização, e que este combate é desigual, pois o homem que quer o poder nunca é aquele que reconhece as flores na berma do caminho que os outros pisam.
Quando uso a palavra identitária, quero referir a identidade pessoal – e a um tempo a coletiva. Produzido o ser social, autónomo e autossuficiente, criado o indivíduo como senhor do seu próprio destino e permitindo o triunfo do individual e do individualismo, a sociedade parecia formatada para que cada um de nós fosse um Estado-nação independente – assim a modos que consagrando que cada um de nós se tornasse uma área geográfica que pudesse ser identificada como possuidora de uma política legítima, que pelos próprios meios, constituísse um governo soberano e sem ingerências na sua soberania. Se assim fosse, a diplomacia dos afetos imporia leis extraordinárias e elevadas, provavelmente místicas, inevitavelmente sábias: todos teriam de respeitar a independência do seu semelhante e a sua própria, igual à do seu semelhante.
Escrevi em tempos (acerca de um padre poeta) que a dimensão poética do Homem aproxima-o do divino. Porque na Antropologia há, ao longo das civilizações, essa necessidade de transcendente. Não porque um deus – independentemente do deus que for – se manifeste mais na Poesia do que na Prosa ou porque seja literária a Sua essência, mas porque a Poesia, como fulcral manifestação e confissão do homem interior, parece aproximar-se mais da Palavra enquanto imitação da mesma: o homem procura o divino que há em si pelo percurso do belo e do essencial, divinizando-se, isto é, produzindo ideais de transcendência, aproximando-se de algo muito acima dos seus desafios quotidianos. Com surpresa, essa exaltação pela palavra é revelada em crentes e não crentes: aos poetas parece corresponder, nas imagens que criam, à frase de S. João[1] : “E eis que faço novas todas as coisas”. Porque, nessa aceção, a palavra é relação, procura, e o que resulta dessa procura, para exaltação de quem a revela.
(Contínua para a semana.)
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