Crónica de Alexandre Honrado
Nunca estarei longe da cidade
“Mas o esforço humano nunca se apaga totalmente,
e velhos mapas de terras, de mares, do firmamento,
dizem-nos como é profundo o domínio,
o saber deste povo de que somos filhos legítimos,
herdeiros e servidores simultaneamente:
do hoje prisioneiro ao livre amanhã que ganharemos”
Salvador Espriu in O Atlas Furtivo, de Alfred Bosch.
(BOSCH, Alfred. O Atlas Furtivo. (2012). Lisboa: Livros do Brasil).
Longe da cidade, evoco a cidade. Há tanto para dizer – eu próprio já disse tanto e, sobretudo, calei outro tanto.
Nunca estarei longe da cidade, mesmo assim. Amo a cidade que agora sofro por vê-la tão mal entregue, reduzida a um punhado de moedas que atira mãos cheias de notas pelas janelas, pelas águas-furtadas, pela história que desdenha e não respeita.
Por vezes, é verdade, a cidade é História outras o simples recanto sombrio que permitiu histórias e lendas, tornando-se, em qualquer dos casos, ponto de encontro da civilização humana. Ou é, em alternativa, o que a história esqueceu no seu percurso, ficando a esmaecer nos anos com o que lhe sobra de ocupação do homem, esse ser simultaneamente religioso, político, económico, sensual, cultural, capaz de deixar à sua passagem tantos vestígios e pegadas desperdiçadas. Na atualidade, a cidade é obrigatoriamente a perceção da sua multiculturalidade, a exigência da interculturalidade, a inclusão, a sustentabilidade, a resiliência, a diversidade cultural, social, religiosa, étnica.
A ideia de que todos os povos do mundo formam uma única humanidade é ingrata; não somos um rosto homogéneo, mas as pequenas marcas que, vistas à distância, assemelham uma face, a mais visível, de uma estranha composição. Os homens – ao contrário dos animais – nunca se reconheceram entre si e deixam nos seus rastos a multiplicidade dessas diferenças. O que hoje é e serve o coletivo, amanhã não será – e perderá préstimo. É claro que há exceções: marcas que, na comunidade, se perpetuam. Mas são reflexos da função inicial. Como os monumentos – que manifestam o desejo dos vencedores, da elite de um tempo e lugar, ficando à mercê de equívocos e de regressões.
Raras vezes, a cidade é, mesmo assim, história adiada ou contornada, ou sobreposta e, se o é, merece então que se lhe estudem as exceções. Por isso, a cidade é, em simultâneo, memória e esquecimento. Podíamos dizer silêncio e som, mas seria reduzir a cidade a apenas um dos cinco sentidos. Coisa viva de coisas vivas – e coisa viva no inventário inorgânico que a serve – a cidade tem a diversidade inevitável e o funcional que lhe reconhecemos. Mesmo nos recantos aparentemente sem função.
No tempo presente, turbulento, que caracteriza os nossos dias em conflito, procurar na cidade – e, no caso, na capital do País – um lugar que resuma, numa bem definida e pequena geografia, o papel de recanto histórico e de história adiada, convulsiva e aplacada, história de relevo intermitente, um local que seja, metaforicamente, um palimpsesto no mapa da cidade e que gere, com simultaneidade, leituras de espaço urbano, de património e de criatividade, em suma, que seja lugar e não-lugar, não deixa de ser a procura do coração que bate, para lá das invasões, da gentrificação e dos que atraiçoam a cidade com ideias de pequena aldeia velha e ultrapassada.
Alexandre Honrado
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