Crónica de Alexandre Honrado
Nos tempos em que usávamos máscara
Escrevi este texto andávamos todos de máscara e essa realidade sublime e violenta parece-me agora distante, mesmo que de quando em vê a tenha de colocar no rosto para esta ou aquela função. Decido revisitar o texto – e esses longos meses de tensão e violência. Cito-me, apenas em parte, mas creio que perceberão porque o faço mesmo assim. O texto completo foi publicado no livro PERSONNA PANDÉMICA
Investigação sobre a noção de identidade no pós Covid-19.
A máscara desumaniza – e como dizia Voltaire, “a desumanidade é o pior de todos os vícios”. Talvez por isso tenhamos começado a decorar as nossas máscaras, a personalizá-las, a usá-las como peça de vestuário e elemento de moda, quase equipável ao equipamento de design que nos atrai – mais florida, mais escura, mais extravagante, mais discreta, mais descartável, mais ecológica. Fazendo da própria máscara uma mensagem. Se a nova ameaça é a de que o étnico assassine o ético, que o preconceito tenha mais forca que os conceitos (os conceitos da defesa do humano), o risco de uma Humanidade mascarada pode conduzir à impunidade que releva dos princípios da distância (sem proximidade não somos no outro) e da indiferença (somos diferentes enquanto seres não mascarados ou uniformizados numa identidade simbólica que parece limitar-se a um retângulo de pano salvador, mas que perde a sua aura messiânica quando analisado culturalmente). É claro que os super-heróis (criados por um certo imaginário, com bases e intenções culturais bem definidos) usam, quase todos, uma máscara. São enganosos. Transformam-se diante dos outros naquilo que os outros veem neles – e nunca no que são. o careto
de Lazarim só ganha coragem por ter uma máscara que o esconde, o chocalheiro da Bemposta ganha os mesmos atributos, os malandros de Podence ou de Cigarróns, são dotados de uma magia que só́ a máscara lhes confere. Nada diferente do que se passa com a luta livre mexicana, e os seus mascarados, ou os falsos lutadores de wrestling. Estão protegidos – mas não como cada um de nós, desvalorizando identidades com um recurso de emergência. Há ainda outras máscaras que nos protegem como a do dentista, do cirurgião, do enfermeiro da unidade de cuidados intensivos, a do fumigador de insetos ou do funcionário da desratização, o britador de pedra, o comunitário cortador de relva, a do soldado que se protege do gás e de outros inimigos em cenário de guerra – ou que identificam valores culturais, como as burkas. Vivemos uma era de afunilamento, de frivolidade dos valores, de retorno aos pequenos egoísmos de grupo em detrimento de grandes causas comuns para a salvação da nossa casa comum. nem a urgência do uso da máscara para a sobrevivência é consensual, muito menos unânime. o egoísmo individual – uso o que quero, eu é que sei o tamanho da minha opção – invade, como em tantos outros casos, a liberdade do outro. Paradoxalmente, enfiamos capuzes, desligamos as câmaras do zoom, procuramos outras máscaras, talvez porque a nossa exposição seja sempre violação (nossa, do que somos, e dos outros).
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