Crónica de Alexandre Honrado
NATAL Fora de Dezembro
Todos os anos escrevo um poema de Natal que, todavia, não fala de Natal nem é escrito em dezembro. A vida tem, como certas libertações e certos castigos, a exigência do pagamento de preços altos, por vezes muito altos. Constrói-se a poética sobre alicerces de memórias. Essas que abalaram mais os sentimentos, retirando o indivíduo aos seus coletivos. E dando-lhe dureza de um ser só. E a dureza de ser um só. Assim sendo, enredam-se sempre memórias e o sentir, em contradições que podem soluçar, ora de risos, ora de mágoas, os versos que se erguem.
Poetizar a vida é para lá da construção de quatro paredes. Quando erguemos quatro paredes, há que dotá-las de janelas que se abram. Sobretudo há que escolher a porta, mas uma porta certa, porque em nós entrarão os outros, nem todos para ficar. Todavia, a perceção de que apenas somos nos outros e com os outros, violenta a pretensão que há sempre no poeta, essa pretensão de ser eremita em causa própria.
Há nesta construção a premência do telhado, menos como fardo sobre os ombros e mais como proteção premonitória das intempéries. Sobre a cabeça, pode fulgir o tempo. Mas é na cabeça que todas as construções se tornam ou esboroam. E diz-se que o gelo esboroa, as minas mais duras e que o sol é capaz de fazer o mesmo às sombras densas mais intensas.
Poetizar a vida é, por vezes, a coragem de escrevê-la. De ofertar-lhe o momento alto da escrita, entenda-se do pináculo da sensualidade em que o poeta se faz livre. E volta, nesse ato, a construção, já não como muro e telha, já não como memória e sentimento abalado, mas rumo à plenitude. Escrever dota quem escreve das asas necessárias.
A rota e o voo, o destino e as etapas ditaram o resto. Mas é na escrita que o tempo se transtorna e o escritor se desafia, tornando-se entidade acima do tempo. Poetizar a vida é confessar o que vai por dentro e por dentro, nem sempre vai a quietude, a serenidade, a pacificação ou mesmo a raiva. Por dentro vai a poética. Isto é, o lado humano que abandona o humano para ser. Por vezes nem os sonhos, nem as memórias servem, mas serve o atrevimento de ficar. Para sempre. Poetizar a vida, da glosa ao verso livre é, para lá do navegar entre as margens, é o levitar e o reconhecer a fundo.
É como fazer, escrever o Natal fora de dezembro.
Alexandre Honrado
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