Crónica de Alexandre Honrado | Maus e bons e os outros todos

Alexandre Honrado

Crónica de Alexandre Honrado

Maus e bons e os outros todos

 

 

Discutiam antigos filósofos ideias de bondade e de maldade, acreditando uns que seria na civilização e no progresso que o ser humano conseguiria encontrar o apaziguamento para os seus ódios mais extremos. O que nele se encontrasse de primário e rude, seria com o tempo transformado em qualquer coisa que o levaria à perfeição, ou muito próximo. O animal que gatinhava, mal se equilibrando, que urrava e caçava com as mãos, seria, anos depois, um deus, ninguém tivesse dúvida. Teria, quem sabe, no futuro distante um computador, tablets, inteligência artificial, programas televisivos vinte e quatro horas por dia, com especial incidência emocional em todas as manhãs, melhor ainda, domaria animais e outros seres como ele, escravizaria e pagaria salários baixos e precários, prosperaria – sem se importar com direitos, mas apaixonando-se pelos privilégios. Gritaria ainda. Mas gritaria a quem o ouvisse que nada existiria de mais atraente do que ser liberal e coisas dessa índole divertida. Tornar-se-ia extremista, à esquerda e à direita, e mataria a torto e a direito, expressão que os computadores sugerem que se escreva “ao acaso”, enfim, mataria quem não estivesse para aturar. Seria populista e cantaria a canção do bandido, brandindo chavões moralistas e corretores, apregoando aos quatro ventos que era ele o exemplo a seguir. Pior: muitos segui-lo-iam, oferecendo a cabeça ao cadafalso, o corpo às masmorras, a língua aos agrafes da censura. Os mais imbecis tornar-se-ia comentadores televisivos. E tudo isto porque o selvagem passaria a ser civilizado e pelo caminho da evolução, do engenho, da técnica, da inteligência (com tendência a artificial), o ser ideal manteria limpo e ativo, afetuoso e forte, o pequeno planeta onde, por estranhos caprichos físicos e biológicos, nos tornámos inquilinos com pretensões de proprietários. Preço a pagar? Destruição maciça e todas as dores de crescimento e o legado egoísta de ruína e morte a todos os filhos que se fizessem. Alterações climáticas, metamorfoses espantosas, mutações genéticas horríveis, cérebros encolhidos ao ritmo de tiquetoques.

Por contradição, os mais selvagens e menos civilizados seriam os mais pacíficos, sem grandes armas não teriam a pretensão a grandes mortes, sem grandes riquezas não cobiçariam a riqueza do seu próximo. Os mais desenvolvidos, por seu turno, mediriam forças pelo seu poder de compra, esse poder que começou na loja dos trezentos e do euro e meio e foi parar ao negócio de armas de grande potência, ao tráfico de pessoas e de droga, de influências, de ideologias e de outras alegrias que fazem dinheiro em grande e somam poder aos poderosos.

No meio de tudo isto, o pior: os filósofos já não discutem, aprisionados que estão nalguma ilha, subordinada aos caprichos de um último deus das moscas, inequivocamente a

Alexandre Honrado

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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