Leituras e revisões durante o confinamento
Por Alexandre Honrado
Não sei bem, pelo menos ao certo, porque me detenho tão longamente sobre textos de autores com os quais discordo. Alguns desapontam-me tanto que acho incrível terem sido escritos por seres humanos sem marca visível de humanidade. Pode parecer masoquismo; estarei longe disso, porém.
Não tenho o menor gosto pelas ideias deste e daquele, no entanto reconheço que a forma como as defendem e lançam ao mundo, acabam por interessar-me e ajudam-me a produzir maior firmeza nas minhas próprias ideias já antes firmes.
Trabalhei autores, no passado, que são disso bons exemplos, como António Sardinha, expoente das ideias do Integralismo Lusitano, em Portugal, ou, vindos de França, os pensamentos de Charles Maurras. Falo de Charles-Marie-Photius Maurras, monárquico, teórico do nacionalismo integral. São dois exemplos de vozes conservadoras que me arrepiavam em cada linha, confessando todavia que eram dos teóricos de direita dois exemplos de coerência, dois pródigos equilibristas em movimento sobre uma linha de escrita fluente, que lhes assegurava excecionalidade
Aconteceu-me o mesmo ao descobrir Spengler, ou melhor, Oswald Arnold Gottfried Spengler, historiador e filósofo alemão, cuja obra O Declínio do Ocidente ocupou um lugar central nos debates historiográficos, filosóficos e políticos entre os intelectuais conservadores europeus, ao longo do século XX. Spengler era tido em conta, por exemplo, nos estudos do Cardeal Ratzinger, ainda antes de ser Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e muito antes de ser eleito Papa com o nome de Bento XVI.
Conservadores, visionários de um mundo que ajudou a consolidar o meu próprio e a decidir em consciência que era nos seus opositores que estavam aqueles com que eu me identificava – e sobretudo que me enriqueciam um conceito de interpretação de uma vida mais justa, equitativa, digna e responsável.
Repito: não impediu esta opção pelos seus contrários de os ler e estudar.
Um dos meus “alfarrabistas” preferidos telefonou-me e, mesmo desafiando os confinamentos, trouxe-me uma leitura que acrescento a esta lista de autores. Um livrinho de 1917, ano da minha perdição, de capa vermelha e a oiro um título sintomático: Questões da Actualidade. Obviamente uma atualidade perdida em cem anos de evoluções. O seu autor é Silvestre Moraes, filósofo, “um dos mais caracteísticos representantes do positivismo de modelo inglês, da linha spenceriana”, monárquico não integralista, católico crítico do comportamento dos católicos, pensador rigoroso que injustamente caiu no esquecimento. Só outro filósofo português lhe resgatou a memória: Pinharanda Gomes, quando fala dele no segundo volume do seu livro Pensamento Português. Depois disso teve honras de inserção na Logos, enciclopédia filosófica.
Numa altura em que me debruço sobre a Memória Cultural e a da Europa em especial, e do esquecimento que anda sempre ligado ao que se recorda ou deixa de recordar, estes protagonistas da história das ideias do Velho Continente parecem-se indubitavelmente fundamentais.
Quem se demorar nestas leituras, recusará por certo modelos populistas e extremistas, repudiará algumas das chagas antigas que parecem voltar ao corpo de uma Europa que não merece mais feridas nem cicatrizes profanadas.
Se há algum verdadeiro sacrilégio humano, é o do esquecimento. Ignorar o que fomos coletivamente condena-nos a ser mediocridade, individualmente. Sempre.
Alexandre Honrado
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