Crónica de Alexandre Honrado
Entre a vida e a morte
Íamos três.
Nessa época era muito comum. Fazíamos centenas de quilómetros e conversávamos. As conversas eram mais compridas que os quilómetros contados.
Estava um verão daqueles, que só algumas zonas do mundo conhecem, com temperaturas anormalmente altas e comentários anormalmente disparatados, atribuindo culpas a quem as não tinha, e endossando os caprichos da natureza às incapacidades humanas.
Ainda na véspera tínhamos discutido coisas dessas, de vida e morte, como são sempre as coisas mais extremas entre nós, os que vivemos e morremos.
Numa pequena aldeia do sul, a GNR pediu-nos para parar, com gentileza. Havia alguns guardas fardados na rua, perto de uma casinha branca de porta aberta, e mais ninguém à vista. A gente do povoado, sem dúvida, recolhera-se nas poucas sombras que inventara. Se é que há mais sombra do que aquela que o céu permite…
Fizemos poucas perguntas e nem era preciso escutar uma resposta: na casa que eles agora guardavam, só porque a lei assim dita, um aldeão, mais um, tinha posto termo à vida. Não haverá história mais banal, nem coisa menos digna de nota. Felizmente, há muito mais para nos entreter e ocupar.
Não me lembro de ter visto qualquer notícia sobre isso. Nem sobre esse aldeão nem relativa aos outros como ele. O verão tem sempre com que se entreter, e a sociedade do espetáculo prefere vidas espantosas ou mortes que criem espantoso alarido.
Não comentámos, também não endereçámos recados aos deuses, não chorámos lágrimas, pois as temperaturas altas seriam lestas a evaporá-las e aquilo que chorámos não tem nome nem desígnio.
O aldeão desceu à terra. Nós, íamos três, prosseguimos em silêncio. A morte é isto. A vida também.
A memória por vezes atira-nos coisas destas para cima, e não sabemos bem o que dizer.
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