Crónica de Alexandre Honrado
Entre a complexidade e o atabalhoamento
Edgar Morin ultrapassou os cem anos de idade. Diria que ultrapassou milénios de sabedoria, mas se o dissesse corria logo o risco de me tornar carne isolada para predadores, o que é o mesmo que dizer, alvo de críticos, esses seres singulares que se alimentam dos dejetos alheios.
A última vez que estive em França, o que foi há dias, comprei uma autobiografia de Morin, na aparência um pequeno livrinho, na essência um livro enorme. Li-o duas vezes, não porque a leitura fosse difícil, os que mais sabem são aqueles que melhor se explicam, mas porque cada pormenor merecia ser saboreado. Que pena não podermos fazer o mesmo com algumas iguarias, comê-las duas vezes para reter as suas qualidades. É que Morin, depois dos 100 anos de vida, continua a pensar. O seu cérebro deve frequentar os melhores centros de rejuvenescimento, acredito que sejam bibliotecas e salas confortáveis onde os neurónios convivam como crianças ao sol num parque seguro e cheio de recursos.
Morin acaba de escrever sobre a guerra, um ensaio exatamente intitulado “De guerre en guerre. De 1940 à l’Ukraine”. Parece inacreditável mas aí está, seguro e objetivo, dócil e acutilante, o Morin de sempre. Complexo, é claro. E isso evocou-me um dos livros que li com mais paixão, traduzido no português do Brasil e publicado há quase 20 anos: “Introdução ao Pensamento Complexo”. Morin escreve aí mesmo que em toda a sua vida jamais se resignou ao saber fragmentado, ou ao poder isolar um objeto de estudo do seu contexto, dos seus antecedentes, do seu devenir.
“Sempre aspirei” – diz ele no mesmo livro – “a um pensamento multidimensional. Jamais pude eliminar a contradição interna. Sempre senti que verdades profundas, antagónicas entre si, eram para mim complementares, sem deixarem de ser isso mesmo, antagónicas. Jamais quis reduzir à força a incerteza e a ambiguidade”.
Por essas e por outras Morin deve viver mais cem anos, precisamos muito dele. Por isso escrevo isto. Por isso, num mundo que trocou a complexidade pela barbárie e pela desorientação, num mundo que não se respeita e segue em frente atropelando-se, ler Edgar Morin e alguns, poucos, da sua qualidade, me estabelece um denominador comum e torna capaz de sentir, por vezes, que na minha ilha há pão e mel e um salutar viveiro de esperança.
Alexandre Honrado
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