Crónica de Alexandre Honrado
Em bica de prosa
Houve um momento neste verão em que, isolado de todos os contextos, vivi trinta e alguns segundos de uma paz indescritível, um silêncio casto, uma temperatura amena, nenhum sobressalto diante dos olhos, a ausência total de cheiros incómodos, uma superfície que ao tato me trouxe uma memória de infância numa época em que a ausência da compreensão do mundo era apenas a graça de nada compreender – ou querer.
Perto de uma das casas onde vivi na minha infância, num desafogado café de bairro onde se podia consumir pouco e permanecer despudoradamente muito, eu deixava-me ficar entre caderninhos muito manuseados e livros de todos tamanhos e medidas, ausente nos dias que nunca passavam iguais as dias que ia passando, numa madorna de lagarto ao sol, pairando em leituras que me davam um conforto inexplicável. Uma bica corrente de prosas ardentes, onde matava muitas das minhas sedes mais adversas,
Eu gostava de bolos e, sempre que podia, aproximava-os da mesa e da boca mas, pensando bem, não me lembro do sabor de nenhum deles, no entanto ainda hoje tenho bem presente o paladar das leituras que então fazia, compondo uma parte de mim, que as outras parcelas eram mais exigentes em ação e aventura. Nesse café o velho empregado envelheceu diante dos meus olhos até se refugiar numa última mancha do tampo da mesa mais afastada das luzes dos dias novos, desaparecendo à vista de todos sem ninguém dar por ele. Era o mesmo empregado que antes me dizia, com tristeza e censura: se já estudou para chegar onde mais queria, porque continua a vir aqui com livros e caderninhos tão manuseados?
Ameaçava-me com olhares e desdéns assustadores, garantindo, mesmo em silêncio, que eu perdia o meu tempo enchendo a cabeça de ideias e de provações. Eu não sabia responder-lhe. O que me levava e leva para dentro de livros e textos, como se fosse o amplo espaço aberto que oferece as pássaros a vontade de evitar todas as gaiolas?
Ensinar-me-iam entretanto que tudo isso que eu lia, da banda desenhada ao ensaio mais denso e por vezes doentio de tão insondável, me levava a querer entender as formas históricas da consciência e da subjetividade, ou as formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou, ainda, numa síntese bastante perigosa, entender quem somos para entender quem sou, tarefa assustadora!
O resultado é isto. Levanto véus e não mostro (quase) nada.
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