Crónica de Alexandre Honrado | É uma questão de sobrevivência, diria.

Alexandre Honrado

Crónica de Alexandre Honrado

É uma questão de sobrevivência, diria.

 

Duas ideias, pelo menos, inscreveram-se nas minhas próprias formas de pensar. Foram captadas da mais recente visita de Edgar Morin, o sábio, a Portugal – em setembro deste ano corrente de 2023- , que as legou com a altivez de uma cultura acumulada em 102 anos de vida intensíssima, contrariada pela modéstia com que se partilha e encanta. Quero resgatá-las, antes que a inevitável destruição da memória imponha a angústia de um esquecimento irreparável.

Eu, que sempre pensei dedicar-me à aprendizagem da escrita, não como um exercício, mas, à moda antiga, (quase) como um sacerdócio, estremeci perante Morin que, avisando o mundo, explicou, uma vez mais que “saber escrever não se reduz a alinhar frases, mas a dar sentido ao que escrevemos.” Só esta frase, sem mais, possibilita ruir a exultação de aberrações como o Chat Generative Pre-Trained Transformer, o ChatGPT, o programa de computador (agora diz-se o chatterbot, pois abandonamo-nos a uma estranha colonização linguística, em especial de expressões de raiz anglófila e logo no período da história em que os ingleses se separaram dos europeus, talvez por complexo de inferioridade, não está ainda provado).

A aberração dessa ferramenta cria a ilusão de poder-se simular os seres humanos em conversação virtual com um programa de computador que passa, ele também, pela falsidade de querer substituir-se aos humanos.

Chatter, o que conversa, e bot, uma abreviatura de robot, fizeram o resto. Creio que é a mesma ferramenta onde alguns políticos vão buscar os seus discursos, fazendo-nos acreditar nos seus ilusionismos.

Edgar Morin falou-se do seu mais recente livro, uma peça de lucidez inequívoca, De Guerre en Guerre – de 1940 à l’Ukranie (Aube, 2023) onde nos esclarece: “navegamos num imenso oceano de incertezas, onde existem apenas pequenas ilhas para nos irmos reabastecendo”.

Numa época de crucificação pública do carácter de alguns, onde não se dá sentido ao que se escreve, onde os humanos são substituídos pela desumanização galopante e os computadores são maquinetas simbólicas às quais ironicamente é atribuída a capacidade da inteligência – palavra polissémica que nos arrasta para requisitos como os da lógica, da abstração, da memorização, da compreensão, do autoconhecimento, da comunicação, da aprendizagem, da planificação, da resolução dos problemas e, finalmente do controlo emocional, coisas que uma máquina, definitivamente, não domina, exatamente porque é uma máquina, mesmo procurando a mimetização do que é humano – nunca época assim, há que reler Morin, vezes sem conta, assimilando-o. Lê-lo é o que o sol faz na pele, quando permite a produção e a absorção da vitamina D, processo pelo qual os raios solares fornecem energia ultravioleta B (UVB), e a pele a utiliza para produzir esse nutriente tão importante para o nosso organismo. É uma questão de sobrevivência, diria.

 

Alexandre Honrado

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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