Um dos temas mais delicados que se me apresentam como motivo de análise cultural é o tema da memória – no singular – e das memórias – no sentido das heranças do que fica, na memória implícita e explícita, em suportes variáveis e registos variados, para o longo prazo das nossas evocações pessoais e coletivas.
A memória explícita é expressa com a linguagem; regra geral é intencional. Partilhamos o que recordamos após selecionado e é-lhe implícito, a essa evocação, um móbil (um motivo), o que significa que, em suma, mostramos como memória apenas pontos altos de muitos sedimentos que, afinal, nos marcaram e com os quais pretendemos marcar quem nos rodeia.
Evidenciamos assim uma parte do que recordamos, em particular o que mais nos interessa partilhar.
As memórias escritas são preciosas como auxiliares de estudo, porque nos permitem perceber o que aconteceu em lugar definido e tempo certo, naquilo que o seu autor resolveu destacar intencionalmente. Há em nós um tipo de memória inconsciente – que nos permite repetir o que aprendemos há muito, por exemplo, como andar de bicicleta, falar ou outros atos procedimentais.
À reunião das memórias que nos fazem desde o feto – hoje estuda-se a memória filogenética, por exemplo -, aos estímulos de sistemas cerebrais e à sua forma de se deteriorar – pela idade, pela doença -, equivale um ponto de encontro que nos faz como indivíduos, como seres mais ou menos conscientes do que somos pelo pensar, pelo reter, pelo aprender, pelo reproduzir.
Há ao longo da vida uma forma sempre adaptativa e, tão importante como a memória, que é, ao mesmo tempo, o esquecimento. Vivemos num momento histórico sem história, pois esta está a dar lugar ao esquecimento?
As memórias registadas não são as memórias que nos fazem pois as segundas “tropeçam” em aspetos semânticos, episódicos, fatores sentimentais/emocionais, cognição, aprendizagem, desgastes.
Vivemos numa época em que uma das doenças do século acusa exatamente a perda de memória.
Vivemos numa época em que procuramos não saber nada do passado, com a argumentação ingénua de que os atos brutais dos nossos antepassados nos incomodam. Não queremos saber o que se passou, mas interessa-nos muito o toque a rebate do que imaginamos, substituindo a recordação pela fantasia e o passado (e o futuro?), pela avidez intemporal de um tempo presente sempre acelerado. Esse é um dos sintomas do menosprezo pela aquisição cultural, em troca da aquisição de uma sensualidade imediata (sensualidade no sentido de estímulo dos sentidos primários, entenda-se).
Assim, por isso, a memória que mais usamos é a do computador onde o motor de busca é um deus contemporâneo. Os ignorantes fantasiam-se de sábios, porque googlaram.
Se o automatismo – os gestos, os hábitos, o conformismo – forem suficientes para levar à boca o pão de má qualidade do dia a dia, sem recordações maiores do que as do telemóvel até que a sua própria memória fique cheia ou o tempo destrua a máquina levando-nos a vida que não vivemos, mas fotografámos entusiasticamente, então dispensaremos a memória substituindo-a de vez pelo esquecimento.
Seremos pouco menos ignorantes do que aqueles dirigentes políticos que diabolicamente chegaram ao topo do mundo sem saber de cor a história – a única que afinal explica a sua caminhada.
Alexandre Honrado
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Gostei!
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