Crónica de Alexandre Honrado | AFETOS QUE NOS AFETAM: a reconstrução

Alexandre Honrado

Crónica de Alexandre Honrado

AFETOS QUE NOS AFETAM: a reconstrução

 

Nenhum itinerário pode considerar-se completo quando o tratamos em forma narrativa. Duas pessoas farão relatos do mesmo percurso de duas formas diferentes. Ambas evocarão memórias singulares e não coincidentes. Pequenos detalhes chegarão depois, vindos sem intenção pré-definida, acrescentarão um ponto a cada conto. Mesmo que se parta ao mesmo tempo de uma linha de partida e se chegue aparentemente a par a uma meta, ombreando, imitando os passos de outro, somos marcados por diferenças e complexidades. É por isso que quem escreve as suas memórias será reescrito por outrem. Por quem julga ter memórias coincidentes com as suas, com os que ouviram ou leram os seus relatos, os que, entusiasmados, trabalharam sobre as narrativas, desabafos e partilhas, como se de coisas suas se tratassem – distorcendo pormenores, amplificando outros, surpreendendo-se com omissões e excessos.

O mapeamento da cultura do Outro está longe de ser conhecido. O nosso mapa está em perpétuo movimento de construção e deslocamo-lo de forma egocêntrica. A alteridade impõe caminhos muito árduos de percorrer e nunca equidistantes dos pares que a eles se atrevem. Sermos incapazes com o Outro leva-nos a um fim catastrófico: a incapacidade de viver com os Outros.

Tudo o que fazemos pode ser uma reconstrução. Isso ultrapassa a carga da recordação. Nem tudo o que julgamos ter ficado para trás é passível de recordar. Todavia, será menos – se nada do que nos antecede não for, na realidade, construído.

Estas palavras permitem acreditar que nasceram há muitos anos, não têm nada de recente. O tempo que passa esconde o que se passou. É uma felicidade contar com essa virtude.

Morreríamos precocemente de um peso esmagador de realidade, não fosse essa dádiva: não recordamos todos os segundos que vivemos. O real impede-nos de ser. É por isso que lhe juntamos a irrealidade, o imaginário, o mundo aparentemente infinito da simbologia e tudo o que concretizamos como algo indiscutível é ilusão, com maior ou menor imaginário à mistura. Porque essa dose múltipla, mista, plural de sobrevivência pode prolongar-nos a vida. E é apenas isso que conta enquanto estamos vivos.

É agradável constatar que nem tudo o que fazemos é palpável. Não criamos assim tanto. Não tornamos coisa sólida três quartas partes do que produzimos. Pelos ares vai o que não detalhamos ou corporizamos. O ar que entra para sair de imediato. O líquido que nos percorre as veias e que ignoramos até se fazer presença. As ideias, tantas que se perdem, ausentes de significado tantas delas e não fixadas, quase todas.

Nem tudo o que fazemos pode ser uma reconstrução. Ou permitir uma reconstituição. Por isso somos vertiginosas incertezas. Pontos de tinta salpicada na vela branca que o vento secou, enfunou, levou por diante. Universos que mudam de características com o tempo e com as aquisições e as fixações do que fazemos e sentimos. O afeto, aquilo que nos afeta, está também presente. É a zona mais íngreme, mais difícil de alcançar, de mais grave acessibilidade, que nos submete — e a que nos submetemos.

 

Alexandre Honrado

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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