Crónica de Alexandre Honrado
A nova idade da polémica
A memória autoriza a narrar uma história sobre o mundo em que nós vivemos. Cada um de nós, os portadores de memórias. A memória é uma narrativa sobre o mundo. Sobretudo, a memória é a narrativa de cada um de nós.
São ecos, estas frases, que me perseguem enquanto atravesso mais uma vez um punhado da Europa, mal cuidada, muito ferida, com garrotes de sol que lhe secam as terras, os corações e o discernimento, onde se põe um ponto final à era contemporânea, para dar como consagrada uma nova era civilizacional, a Idade da Polémica, um estranho monturo de fraude, mentira, revisitação do pior do passado histórico, extremismo, imoralidade, traição e heresias, o flagelo da sorte e da morte, a guerra, pecados não só religiosos como humanos, que isto do humano é muito mais do que um legado religioso, é a pedra que carregamos e onde tropeçamos uma e outra vez, incapazes de aprender com os nossos passos trôpegos.
Longe vai o tempo em que Fedro discutia com Platão, amarrados em diálogos sãos e profundos, reduzindo a vida a um triângulo feito de amor, amizade e reencarnação, fórmulas que ocupavam os vértices e simplificavam a arte da retórica e da própria existência, emanando de uma outra Europa que pensava e se pensava.
A intensidade da vida, mais imprevisível que brutal, pinta um quadro distorcido de não referências, já que a cultura da morte e da ignorância tapou os buracos contínuos da nossa irresponsabilidade, que conduziram ao retorno do fascismo, à guerra no Velho continente, à perspetiva de um inverno gelado, sem gás nem solidariedade humana e a tantas outras catástrofes das quais desconhecemos a dimensão aflitiva das consequências previsíveis.
Não são as alterações climáticas que nos achatam na prensa tensa das novas ocorrências, pois conseguimos combater ainda o calor excessivo e o frio rigoroso, mas o sermos incapazes de alterar o nosso comportamento individual confiando numa qualquer elevação coletiva que nos afaste do irracional e nos torne gente sóbria e solidária.
Atravesso a Europa neste clima de azeda expectativa. Nos sítios mais recônditos é mais importante ter televisão em pacotes de fibra, 5 G, jogos eletrónicos para toda a família, relógios que medem a pulsação e um bom carro pago a prestações dolorosas, do que fomentar a ambição de ter menos e melhor, de saber e não ignorar, de agir e não oferecer com um encolher de ombros e os braços descaídos, a vida, entregando-a à triste sorte de um passado assassino que nos marcou a ferros e encheu as valas comuns com os nossos antepassados – memórias gritantes que por triste desleixo e cobardia, perderam a voz e que deixámos de incluir na narrativa de cada um de nós.
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