Crónica de Alexandre Honrado
A nossa bela mestiçagem
Ando pela Lisboa que amo profundamente. Se olharem para as árvores, os sons de Lisboa não diferem. São um coro amável de muitas influências. Encontrarão nessas árvores a cantonense Muk Min, a árvore do algodão, vinda de Macau, a dois passos de um embondeiro angolano, de uma papaia moçambicana, a poucos metros estará um pinheiro-da-terra ou pinheiro de São Tomé, mais adiante um marmolano, de Cabo Verde, e uma Jequitibá, a árvore brasileira de maior porte e longevidade, um tamarilho timorense logo noutra esquina… E hoje até já se enfeita a “ialenka” no Natal de Lisboa, pois ucranianos são aos milhares no nosso território, e muitos falam um português barroco, de gramática conjugada e erudição atenta…
Eu não sei se há uma Lusofonia, nem se, pelo menos, Lusofonia é uma boa palavra para sintetizar os muitos milhões que somos em sons parecidos, com tons diferenciados, mas sei que nos encontramos todos na mesma língua quando sonhamos, quando nos indignamos e quando criamos – e isso é ter na aldeia global uma bolsa de resistência em que podemos acreditar que estamos juntos na hora de sentir. Aceitar uma língua dominante com a felicidade de saber que não é uma língua de quem domina – é esse o grande riso da atualidade.
Não há já espaço para impérios – que aliás nunca chegámos a construir-, mas há a força de um encontro de culturas que, sem esforço, produzimos. E quando produzimos cultura, não somos dos códigos, mas sobretudo da descodificação. Isto é, se usarmos uma forma mais afetiva para explicá-lo, quando geramos um filho não somos seu proprietário, mas espetador comprometido com uma génese do que dele virá e do que, distante de nós, pode parecer um pouco de nós, sendo e não sendo ao mesmo tempo. Ao escrever, cada um de nós, escritores, reata a solidão da sua ilha isolada; torna-se um pequeno deus caseiro, dando vida a criaturas, formas, locais, sentimentos e dúvidas – voltando à qualidade do ser humano vazio e impotente na última página de cada obra que finaliza. O ato criador passa a ser o ato de criar: aquilo que fazemos sai de nós e é nos outros que deve acontecer. Nunca ressuscitamos, ao terceiro dia da obra publicada. Renascemos. Somos a Fénix das cinzas das palavras.
Isto só é possível desde que a cultura é nossa. Não sendo de alguns, ela pode ser tudo. Uma cultura com o alicerce de uma língua viva. Qualquer coisa acima das fronteiras, tão quente em Java como em Cochim, em Malaca como em Santiago, em Ano Bom como em Curaçau, desde que alicerçada no (re)prestígio proporcionado pela independência dos respetivos países que a reinventam.
Distinguimos a literatura portuguesa das literaturas de língua portuguesa, nas quais incluímos as literaturas africanas. Mas Luís Cardoso de Noronha em Timor, Vasco Cabral na Guiné, Manuel Lopes, em Cabo Verde, Henrique Senna Fernandes em Macau, Luandino Vieira em Angola, Mia Couto em Moçambique, João Ubaldo Ribeiro no Brasil, nós todos nos nossos redutos, temos realmente alguma coisa em comum? Alguma tarefa em comum? Alguma comunidade de afetos que nos torna cúmplices pelo sonho de um mesmo código? E se temos essa cumplicidade, sabemos o que fazer com ela? A nossa língua é a nossa mais bela mestiçagem. Aceitar isso, equivale a aceitar que o que somos em fusão, em partilha, em mescla é que nos torna a coisa pura e avaliável que é a cultura que emanamos.
Alexandre Honrado
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