Crónica de Alexandre Honrado – A memória que nos esquece

Alexandre Honrado

 

Crónica de Alexandre Honrado
A memória que nos esquece

 

Pierre Nora, historiador e editor (especializado na área das ciências sociais), diretor na École de Hautes Études em Sciences Sociales, afirmou um dia que “só se fala tanto de memória porque ela já não existe”. Diria eu, se é assim, daqui a nada não me lembro do que fez surgir a vontade de escrever isto. Mas até lá, aproveitemos.

Penso eu que a memória apagada pela distância e votada ao esquecimento procura constituir um lugar onde ficam as coisas, as sensações, os objetos, as ações, os sentimentos, as dores e os traumas desaparecidos num cemitério de desprezo, procurando-se nele, através da ignorância do que foi deixado para trás, um equilíbrio novo, um desdém pelo ancestral que, fechadas as cicatrizes, proporcionem uma nova etapa construída menos pela tradição e decididamente pela possibilidade de um futuro inédito e, talvez utopicamente, melhor.

A memória resiste, apesar de tudo, quando sabemos recriá-la: passá-la aos nossos, perpetuando o que de melhor possa conter. É claro que há políticas geradoras de memória, que edificam estátuas e monumentos, raças e ruelas, não para que recordemos, mas para que não nos esqueçamos do que nos dão a recordar. Todavia, é inútil. Sabemos de cor nomes de ruas de ilustres mortos cujas façanhas morreram pouco depois deles. Ignoramos quem terão sido, passamos por eles sem reconhecer os ilustres avós que podiam ser da nossa árvore genealógica, de frutos variados e nem sempre bons de recordar.

Contornamos o monumento, mas sendo como somos habitantes dos nossos hábitos, esquecemos a razão que esteve na sua origem, o porquê de estar ali, o desejo que esteve na vontade de o erguer; ou o sentimento de continuidade que alguém sentiu e tornou residual e vão.

Dizia o tal Pierre que “há locais de memória por não haver mais meios de memória”. Penso nisso e penso naqueles que são votados ao esquecimento por vontade daqueles que vieram depois deles e que não tardaremos a esquecer. Lembro-me da atriz, popular na sua época, que todos associavam à terra onde nascera, dando-lhe honras de toponímia, de auditório cultural, de coisas várias, trocada agora por uma figura mais popular nos tempos presentes, sugando a toponímia, as coisas várias, sem, todavia, ter feito alguma coisa sólida para merecer tanta euforia.

A organização da memória coletiva pelos agentes políticos é feita com a intenção precisa de selecionar eventos, tornando-os lembrados e registados, ou mesmo descartados, para servirem politicamente objetivos muito específicos. Hoje assistimos diariamente a esses atropelos. E, por exemplo, ao assassinato de carácter pelas Relações-Públicas de guerrilha (que se centram em destruir as pessoas: os interessados pagam para desacreditar os rivais com campanhas de difamação e calúnias várias, notícias falsas e eventos falsos para futura recordação, memória falsa, capaz de mudar opinião pública e sentimentos). São tempos de profunda cobardia e da louvação da meritocracia dos menos aptos, dos mais oportunistas. Tempos para esquecer, como é apanágio de tantas outras memórias.

 

Alexandre Honrado

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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