Crónica de Alexandre Honrado
A cidade como metáfora viva
Não gosto das cidades que me são dadas para viver e, no entanto, amo profundamente as cidades, as minhas cidades – e tenho várias, o que pode parecer pretensioso.
Gaston Bachelard (Bachlard, 1996) dizia que “apenas o espírito é científico” e isso pode indignar os mais materialistas, os mais exatos, para usar uma expressão querida a alguns cientistas. O espantoso é descobrir, entendida a história do homem, que o verdadeiro valor para um pensamento ingenuamente elementar é a obsessão e a intensidade.
Seja permitida, então, a metáfora entre a cidade e o que a faz viva, o que nela é orgânico e respirável, transmutação e animal: cidade é corpo tangível. E espírito (científico ou criativo, libertador).
Entre a promessa utópica e a promessa ideológica, a cidade é uma entidade no espaço. Cresce – ou limita-se, constrói-se ou cede aos discursos da desconstrução, é a um mesmo tempo paredes e não-lugar, instantaneidade e prolongamentos de tendências longas e conservadoras, fluxos de ver e de viagem, cultura de rizoma e sementeiras.
A cidade é habitação e coabitação; habitantes e sem abrigo, hortas, enormes edifícios e pequenos becos, animais de estimação e de esgoto.
O que é diverso convive sem grande tensão (já o que é adverso sofre o confronto e o seu preço). A cidade, todavia, não é cultural no sentido estrito. É multicultural. É plural. Exige ser intercultural – o que a homogeneizaria ou lhe permitiria maiores entendimentos e a construção de uma paz efetiva pelo encontro das suas diferenças.
É heterogénea e enganadora, a cidade. Sobretudo é enganadora. É itinerário, interseção, centro e monumento. É a ilusão e a metáfora. O local onde se muda de vida. O oposto ao campo onde a vida nos muda. A cidade é ainda equipamento. Ocupação. E transitoriedade.
Na cidade perseguimos o funcional e, todavia, a maior parte dos seus elementos nada tem a ver com os citadinos, são ruturas e descontinuidades no espaço, marcos que ignoramos quando lhes passamos à frente. Nem sempre desfrutamos do que está do outro lado da fachada, em suma.
Na sua qualidade de espaço de acolhimento, por outro lado, a cidade parece ser um ponto de encontro geográfico de variedade ilimitada. Ou seja, nem uma língua comum anda pelo ar, que a cidade é sempre o local de acolhimento de muitas migrações e redime-se na vozearia, onde sotaques se mesclam na língua da cidade. E os tons de pele, os modos de vestir, as opções nos pedidos gastronómicos vão revelando a diversidade. Todos diferentes. Todos iguais aparentemente e depois no grande plano a diferenciarem-se. Todavia, não sejamos otimistas: a cidade é também os seus silêncios.
Na baixa da cidade e nas suas colinas, há o espetáculo animado dos inúmeros turistas que tomam de assalto os espaços e os usam como seus. É a cidade flutuante, provisória, a prazo, num colorido bailado sazonal. Isso tornou-se comum nas muitas baixas e colinas das muitas cidades – e hoje as vilas querem deixar de o ser e as aldeias diluem-se, pequenos satélites em busca de uma identidade, ou melhor, de uma autonomia.
Ao pensar a cidade como acolhedora de não lugares – sim, depois de ler Marc Augé (Augé: 2005) -, partimos de algumas incertezas e distinguimos o espaço urbano e o seu preenchimento, a distanciar-se de George Steiner e da (sua) Ideia de Europa (Steiner: 2005), repondo o conceito de itinerário à guarda do que nele emana do urbano – meditemos sobre a etnologia da solidão. É que, olhando em redor, a cidade é esse contraditório: populosa. Etnográfica. E dentro dela a solidão ocupa lugares (e não lugares) inquietos. Como em nós, afinal.
De um modo sereno, podíamos admitir que a cidade é um objeto e que é objeto. Um objeto que se concebe, muda no papel, forma-se e deforma-se com opções da municipalidade, da política, dos tempos – e é objeto de olhares diferenciadores. E transforma-se em nós, por nós, para nós, fora de nós.
A cidade possui um interesse didático autónomo e particular, oferece aos seus intérpretes uma metodologia de reflexão sobre marcas de subjetividade na apreensão da realidade. A sensação de pertencer e de estar contido.
Será isso a cidade? Os carros apitam, os elétricos gemem. Os barcos partem. Há um rio que define a cidade e a limita. Há pessoas como rios.
Nas suas simbologias difusas, a cidade reinventa-se também nos muros, onde uma linguagem nem sempre percetível se declara contra o sistema, em cores e formas inesperadas. Todos passam por elas, por essas pinturas, sem as verem realmente. Como tatuagens, que se vão multiplicando em pele e pedra.
A cultural mural tatua a pele da cidade. Somos cultores de uma presença ausente. Somos habitantes infelizes dos nossos hábitos. Somos eufóricas recriações da nossa necessidade de lúdico. Somos cidadãos num ecrã “com a era da tela global, o que está em curso é uma mutação cultural enorme que afeta aspetos crescentes de criação e até mesmo da própria existência.” (Lipovetsky e Serroy, 2009).
Ao mesmo tempo em que tudo isto se dilui, aparentando a existência, a cidade não existe verdadeiramente (fazendo mesmo assim parte inseparável de nós).
Alexandre Honrado
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