Recordando um estranho amigo
Alice Vieira
RECORDANDO UM ESTRANHO AMIGO
Alice Vieira
Às vezes basta uma palavra, um nome, um cheiro para de repente nos lembrarmos de coisas ou pessoas esquecidas há muito.
Como todos os que por lá andam sabem, a Ericeira não tem uma livraria. É daquelas coisas que faltam naquele paraíso… Em tempos teve, mas acabou por fechar. Resta-nos a tabacaria do Jogo da Bola, onde se encontram todos os livros da sua excelente edição “Mar de Letras” (com muitos livros sobre a história da Ericeira), e mais alguns de colecções de bolso de outras editoras.
Há dias trouxe de lá o livro “Quando Salazar Dormia”, de Domingos Amaral, que nunca tinha lido. Meio ficção, meio história, era o que me apetecia ler naquela altura, ainda para mais com a referência aos três mil refugiados que a Ericeira acolheu na última guerra. O livro certo a ler no lugar certo.
E de repente, pelo meio do livro, uma breve referência a jornais e revistas pró-nazis que em Lisboa então se publicavam
E de repente leio uma referência à revista “Esfera”.
Há quantos anos não me lembrava da “Esfera”…Não da revista em si—que nunca li nem vi—mas do seu director.
A revista “Esfera” era dirigida pelo jornalista Félix Correia.
Nazi assumidíssimo até ao fim dos seus dias (morreu em 1969), Félix Correia foi o único jornalista português a fazer uma entrevista a Hitler. Entrevista calorosíssima, cheia de elogios, estava ali o salvador do mundo.
A guerra terminou, os anos foram passando, e Félix Correia foi parar à redacção do “Diário de Lisboa”.
Conheci-o lá, em 1961 Era um jornalista extraordinário, muitas das suas reportagens ficaram famosas, e às vezes até pequenas notícias, como aquela que fez escola: a contar a história de um rapaz no Bairro Alto que, para roubar o dinheiro da tia, lhe tinha atravessado uma faca no gasganete, rematava : “Então isso faz-se à tia?…”
Mas para lá das suas qualidades de repórter, Félix Correia era a melhor pessoa que conheci, um velho jornalista que ajudava todos os novos, que nos ensinava tudo aquilo de que precisávamos, sempre pronto a acudir-nos nas nossas aflições de gente a começar a profissão.
Sempre de sorriso na boca, nunca me lembro de o ver zangado, ou de responder torto, ou de nos virar as costas.
Nunca ouvi ninguém dizer mal dele.
E ainda hoje, se perguntarem aos jornalistas velhotes como eu, que com ele conviveram no “DL” todos dirão o mesmo: era o melhor colega, era a melhor pessoa (aqui há tempos ouvi o Joaquim Letria a dizer a mesma coisa)
O meu marido (comunista assumidíssimo até à sua morte), seu camarada de profissão no “DL”, também dizia o mesmo.
E, já no fim dos anos 60, quando, já muito doente, o Félix entrou para o hospital—donde não viria a sair…– lembro-me que eu e o meu marido íamos visitá-lo todos os dias.
No último dia (claro que nós não sabíamos que seria o último…), íamos a sair e ele chamou o meu marido. Quase já sem poder respirar, sorriu e murmurou: “Ó Mário, eu vou, mas vou de papinho cheio”
Félix Correia, nazi assumido até à sua morte.
As pessoas são mesmo seres muito, mas muito estranhos.
Poder ler (aqui) as outras crónicas de Alice Vieira.