Crónica de Alexandre Honrado
Apontamentos de Paris
O quotidiano vai já respondendo a uma dúvida inquietante: há uma nova cultura emergente, uma mescla sobrevivente que resulta da desvalorização do ser, isto é, de todos nós, e é efeito perene dos muitos declínios que permitimos e que nos negaram a eternidade.
Não há progresso sem conhecimento, e essa cultura é a do desconhecido. É um borrão feito sobre camadas mais sólidas, um palimpsesto, se é que ainda alguém sabe o que isso é. Traduz a falta de critérios estéticos de qualidade e a própria dúvida: de que falamos quando falamos de qualidade?
É a cultura possível na sociedade de consumo, essa que não gosta muito que os povos vão à escola, porque quem aprende, aprende a decidir, a defender-se, a dizer não e a opor-se.
Vale muito, essa cultura, pois gera milhões para a economia. E não vale nada, pois é insuportavelmente descartável.
Todos os dias sofremos os seus danos colaterais. Mesmo que não queiramos. Entra pelos olhos, ouvidos, boca, narinas, tocamos-lhe. Porque toda a cultura é fragmento da sensualidade.
A multiplicação das ofertas anestesia. Temos muitos canais de televisão e o que passam é a fúria do desperdício excessivo; morre-se e mata-se muito nessas televisões; faz-se um sexo de casa de passe barata e propagadora de maleitas, nessas três e seus sucedâneos (jornais e revistas de pouca qualidade e promotores de muita insanidade). E procura-se formatar o pensamento através de noticiários que são caricaturas de notícias e da isenção que se lhes devia exigir.
Num livro que surpreendentemente ainda anda pelos mercados, um autor citava Bernard Shaw, escritor famoso, quando ao falar de fotografia a comparava às ovas do bacalhau. Milhares de ovos e só um garante a continuidade da espécie. Shaw queria que o massivo gerasse qualidade, ao dizer isto. Estava longe de saber que os fotógrafos foram hoje substituídos por telemotógrafos que julgam saber fotografar só porque a máquina lhes dá esse prazer.
A curto prazo, seremos um banco de dados inúteis e ninguém saberá o que fazer a tanta foto (e filme caseiro, e voltinhas nos drones e outras piruetas de grande inutilidade).
Não há equilíbrio entre os bens de consumo e o consumidor. Para quem produz é obrigatório que a crise desapareça de vez em quando para escoar os produtos e criar a ilusão da retoma e do poder de compra. Depois, o ciclo fecha-se cumpre-se e faz-se mais fortuna com a austeridade.
Os custos-benefício são sempre altos. As expectativas cada vez mais baixas.
Quando não se entende a liberdade, persegue-se a cultura. Cria-se o mercado da repressão. Estamos a vê-lo chegar. As inovações do pensar estão a ser criticadas e condenadas – do Papa aos artistas mais ousados -, os moralistas de pacotilha que até agora só mostravam a ponta do focinho já se manifestam às claras.
Multidões incapazes de escrever o seu próprio nome criticam por escrito até o que não sabem.
Assistimos ao nascimento de uma nova cultura, débil e inculta, mas que nos governa e governará pelos tempos próximos. Já a conhecemos de outras manifestações extremas. Esteve em Holodomor, Ucrânia, em Auschwitz, Polónia, na China, onde os Guardas Vermelhos andavam pelo país tentando expurgar as “Quatro Coisas Antiquadas” – ideias, cultura, costumes e hábitos -, na Bósnia enquanto “definia” as categorias étnico-nacionais – sérvia, croata e bósnia (muçulmana) – num horrível banho de sangue e loucura intencional; em todo o lugar onde o imperialismo americano se sente, na Palestina ou no Chade, no Níger, no Afeganistão, no Iraque, na Síria… É a cultura da morte, do conservadorismo, da repressão, do holocausto, da desumanização, da forma alarve como se desdenha do ser humano esplendoroso.
Alexandre Honrado
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