Pergunto à minha volta se têm notícias da Síria. Recebo alguns sorrisos como resposta, mas quem é que quer saber da Síria?
É verão, ainda é agosto, não há nada importante para encher as capas dos jornais, a menos que a miúda da Malveira, que vai ganhar um ordenado maior do que não sei quantos presidentes da República juntos, seja motivo de interesse para alguém.
Enquanto os outros mergulham escavo nos noticiários e lá encontro uma pálida e magra alusão no fim da linha: chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, declarou esperar que os países ocidentais não “entravem a operação antiterrorista” em Idleb (noroeste), última região síria fora do controlo das forças governamentais.
Ainda sou do tempo em que se falava da Síria – é isso. Envelheci precocemente.
Por defeito profissional, começo a pensar que a realidade manifestante ou subjetiva é o futuro e a mente. Recordo as palavras de um pobre político desqualificado que agora dá umas aulas, quando disse que o futuro não faz a História, quando, paradoxalmente, é só ele que a faz: não se mata a menos que não seja para ser proprietário do futuro, não se acredita em cenários messiânicos a não ser que se confie que do futuro surgirá algo melhor, não se pesquisam astros e galáxias à procura de água, se não desejarmos estar cá mais uns anitos.
À minha volta rapariguinhas e rapazes fazes combates ferozes, “matei-te!” grita um deles, muito feliz. O irmão mais velho e melhor adestrado está de jogo electrónico na mão e mata outros inimigos invisíveis com um sorriso cândido, talvez o pior sorriso sádico, o sorriso angelical dos que colhem a vida e se sentem bem com isso. Os pais falam com um casal amigo e comentam alegremente uma série de televisão onde a morte se alterna com a procura da morte, mais caçadas aos vivos e a mortos-vivos e outras complicações que dão muito prazer às audiências.
Lembro-me vagamente dos jovens refugiados de Kosovo, das crianças americanas expostas à violência e a outras experiências dolorosas, e lá vou eu para o espaço subjetivo e para a distância emocional que nos separa.
Enumero desgraças quotidianas: violência nos noticiários, conflitos violentos de todas as naturezas, depressão, angústia, autodestruição, suicídio, violência doméstica a começar logo no namoro, racismo, exclusão de género, o fogo posto da existência.
Estudo cultura. Isto é cultura. Uma cultura da insanidade que se foi tornando normal, do atentado terrorista ao assassino em massa, dos irmãos franceses que mataram os redatores-ilustradores do Charlie Hebdo, ao extremista norueguês que disparou até à morte numa escolar secundária, ao inglês que atacou o Ariana Grande em Manchester, aos dois miúdos norte-americanos que promoveram o massacre de Columbine, ao terrorista francês que terá preparado o ataque ao Bataclan, em Paris…
Assassinato em massa, spree killer, terrorismo, as palavras tornaram-se banais e já ninguém teme o inesperado, nem receia os seus protagonistas, porque se trata disso mesmo: ato inesperado, e gente que procura protagonismo e se dilui no nada que pretende (e que pretendem deles).
A “cultura da morte” tornou-se uma das principais características do nosso século.
Em 1999, o professor Michael Kearl, do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Trinity, em San Antonio, Texas, EUA, disse a respeito da manipulação do tema da morte: “Da nossa posição privilegiada neste fim do século 20 [1999], verificamos que a morte está a tornar-se reconhecida como a força dinâmica central que sustenta a vida, a vitalidade e a estrutura da ordem social. A morte é a musa de nossas religiões, filosofias, ideologias políticas, artes e tecnologias médicas. Vende jornais e apólices de seguro, dá vigor aos enredos dos nossos programas de televisão, e . . . até confere energia às nossas indústrias.”
Da venda – e compra – de armas, que equivale à morte de cada vez maior número de civis, aos enredos dos filmes que precisam da morte como dinâmica, às absurdas histórias da telenovelas portuguesas, onde todos se matam, se odeiam, se levam à extrema condição de não pugnarem pela vida e seus direitos, até à “arma branca” que é o nosso telemóvel, onde é possível matar algumas (muitas) pessoas, saindo-se impune findo o massacre e apto a descarregar sem remorsos o joguinho seguinte.
Educa-se pouco, mas ensina-se muito a matar; ensina-se muito e bem. É esta a insensibilidade cultural que traduz um novo patamar de cultura.
Pergunto pela Síria. Ninguém sabe quem é.
Alexandre Honrado
Historiador