O medo da morte fez disparar o número de testamentos durante a pandemia?
por Nuno Cardoso Ribeiro
A emergência do COVID-19, como qualquer outro evento catastrófico, leva-nos a equacionar a nossa própria mortalidade. E, naturalmente, tentamos acautelar o futuro daqueles que nos são mais queridos, sejam eles ou não os nossos familiares mais próximos. Nalguns países os media relataram já um aumento dos testamentos e, muito provavelmente, também por cá notaremos idêntica tendência logo que os números oficiais sejam conhecidos.
Mas, afinal, que bens ou que parte dos bens da nossa herança podemos deixar em testamento?
A lei prevê a existência de herdeiros, chamados legitimários, que não podem ser excluídos da herança. São eles o cônjuge, os ascendentes (pais, avós, etc.) e os descendentes (filhos, netos, etc.). Estes herdeiros só em situações excecionais poderão ser excluídos da herança. Serão os casos em que o herdeiro comete determinado crime contra a pessoa do falecido ou se recuse a prestar-lhe alimentos, por exemplo. Um mau relacionamento entre o autor da sucessão e o herdeiro legitimário não é suficiente para negar-lhe o direito à herança.
Estes herdeiros legitimários têm direito a uma parte da herança, chamada a legítima, que não pode ser afetada por via testamentária. A parte da herança que corresponde à legítima é variável consoante os herdeiros legitimários a ter em conta, podendo ser de 1/3, metade ou 2/3 da herança.
Assim, por exemplo, alguém que deixe cônjuge e filhos, só poderá dispor em testamento de 1/3 da sua futura herança, já que a legítima, neste caso, é de 2/3. Se, porém, apenas lhe sobrevive um filho, então já poderá dispor de metade da herança, uma vez que a legítima do filho único é de apenas 1/2. Se lhe sobreviverem os pais e o cônjuge, então a legítima também será de 2/3 da herança.
Desde que a legítima dos herdeiros (legitimários) seja respeitada, o testador pode dispor livremente da parte remanescente do seu património por meio de um testamento.
No testamento, o testador pode dar aos seus bens o destino que entender, atribuindo-os a familiares, a terceiros, ou até a instituições. Existem pessoas que, em virtude da especial ligação que mantiveram com o testador, não poderão ser seus beneficiários, como será o caso do médico ou enfermeiro que o trata na doença que lhe causa a morte, ou o sacerdote que o acompanha nos seus últimos momentos.
Se o testador, após a realização do testamento, mudar de ideias, poderá livremente revoga-lo, ou simplesmente substituí-lo por outro. Neste último caso, será o último dos testamentos que prevalecerá se, porventura, os testamentos forem incompatíveis entre si.
O regime legal português, no âmbito da sucessão testamentária, deixa, como se vê, pouca margem de manobra para dispormos livremente do nosso património para momento posterior à morte. Noutros países, designadamente de tradição jurídica anglo-saxónica, a liberdade testamentária é consideravelmente maior. Por cá, várias vozes se vêm levantando exigindo maior liberdade nesta matéria, pelo que é possível que, num futuro não muito longínquo, se venham a verificar mudanças legislativas. Em última análise, haverá que decidir se deveremos privilegiar os interesses da família, restringindo a possibilidade de testar, ou a liberdade individual de cada um dispor como bem entender do seu património para depois da morte, caso em que a possibilidade de testar deverá ser alargada.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Nuno Cardoso Ribeiro