Almanaque Legal | Nuno Cardoso Ribeiro – Casa de ferreiro, espeto de pau

Casa de ferreiro, espeto de pau
por Nuno Cardoso Ribeiro

 

A pandemia veio pôr a nu muitas fragilidades na advocacia, uma profissão tida por abastada. A realidade é bem diferente, porém. De acordo com um inquérito promovido para Ordem dos Advogados, parte significativa deles aufere rendimentos baixos ou medianos, e 88% declararam que perderam rendimentos durante a pandemia.

O Estado e o Governo, inexplicavelmente, deixaram totalmente desprotegidos os advogados, excluindo-os de muitas das medidas que, com maior ou menor generosidade, se foram encontrando para outros profissionais.

A Ordem dos Advogados e a CPAS (Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores) também não conseguiram reverter este estado de coisas, e muitos colegas vivem situações muito difíceis. Felizmente, os tribunais reabriram e, a pouco e pouco, a normalidade vai regressando.

Vem isto a propósito de uma bizarra situação que se vive, há largos anos, na advocacia e que perdura, pese embora a sua manifesta ilegalidade ou, pelo menos, legalidade duvidosa.

Muitas sociedades de advogados têm ao seu serviço outros advogados que lhes prestam serviços. São os chamados associados. Sucede que, no caso de algumas sociedades, os associados são verdadeiros trabalhadores, e não profissionais independentes, mas sem que se lhes reconheçam os inerentes direitos.

LEI

Na verdade, os associados prestam serviços num determinado horário que lhes é fixado pela sociedade, não têm liberdade para trabalhar por conta própria ou para outros advogados, laboram nas instalações da empresa e usam os meios de produção desta (local de trabalho, computadores, impressoras, apoio administrativo, etc.), auferem uma retribuição mensal, sempre igual, eventualmente complementada com um prémio anual de produtividade, recebem ordens e instruções, etc.

A lei qualifica semelhante “prestação de serviços” como um verdadeiro e próprio contrato de trabalho e, nestes casos, poderá ser reivindicada em tribunal a qualidade de trabalhador da entidade a quem se presta serviços, com as inerentes consequências.

A verdade, porém, é que os associados se mantêm nessa situação, alguns por largos anos, sem que se lhes reconheça formalmente a qualidade de trabalhadores por conta de outrem.

Alguns deles, é certo, já reivindicaram no pretérito, em tribunal, a qualificação desta relação jurídica como laboral, e com sucesso. A esmagadora maioria dos advogados associados nesta situação, porém, conforma-se com ela e nada faz.

O receio de perder a sua posição justifica, naturalmente, a inércia, sendo certo que uma ação judicial que movessem contra a sociedade para a qual “prestam serviços”, independentemente do resultado, significaria que dificilmente conseguiriam uma colocação noutra sociedade. Apesar de tudo, o meio é pequeno e estas coisas sabem-se.

É extraordinário que uma profissão cujo fim é a defesa dos direitos dos outros não acautele, em primeira linha, os seus próprios direitos, mas assim é. E há largos anos.

Quantos destes associados terão sido agora sumariamente dispensados das sociedades para as quais “prestavam serviços”, a pretexto da pandemia, sem qualquer indemnização ou compensação? Muitos, certamente, e eu conheço alguns. É caso para dizer-se que em casa de ferreiro, espeto de pau.

Nuno Cardoso Ribeiro
Licenciado em direito e pós-graduado em contencioso administrativo e em Direito das Crianças, Família e Sucessões , sendo também mediador, formador. É vogal da Direcção da Associação Projecto Jovem – IPSS dedicada à integração de jovens e adultos portadores de deficiência física ou motora.

 


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