“Para a Mlle. Alice Vassalo Pereira, por gostar tanto de teatro”
Uma conversa com a neta de Palmira Bastos
por Alice Vieira
Olho para a fotografia, com estas palavras escritas a tinta verde e, de repente, volto à minha infância, quando eu ainda me chamava assim, princípio dos anos 50, e ando pela mão do Sr. Acácio pelos bastidores do Teatro Nacional, e entro em todos, os camarins, e falo com todos os actores, e eles acham-me graça e falam comigo e deixam-me andar por ali. Ainda hoje me lembro deles todos.
O Sr. Acácio trabalhava no teatro e era amigo da minha família. Naquelas peças muito importantes, em que as atrizes usavam fatos até abaixo e cabeleiras, ele entrava, com um candelabro para deixar em cima de uma mesa. Foi com ele que aprendi o que era direita alta ou esquerda baixa. Os meus tios adoravam teatro, levavam-me sempre com eles e, quando a peça terminava, o Sr. Acácio vinha buscar-me e levava-me para os bastidores.
De vez em quando levava o meu livro de autógrafos. Uns assinavam apenas. Outros davam-me fotografias e escreviam dedicatórias.
E eu gostava muito de uma senhora, já não muito nova, de cabelos brancos, com uma voz muito doce e muito calma, que às vezes até me explicava o que eu tinha acabado de ver no palco e não tinha entendido muito bem.
Chamava-se Palmira Bastos. E acho que nunca falhei uma peça dela. Claro que “As Árvores Morrem de Pé” é aquela de que toda a gente ainda hoje se lembra, mas há outras de que também gostei muito. Tenho uma muito vaga memória de ter assistido à “Casa de Bernarda Alba”, não pela peça em si, mas porque eu era muito pequena, ficava sentada ao colo da minha avó, e de repente exclamei “Ai, Bia, a tua saia pica!”, e toda a gente desatou a rir, no momento mais sério da peça… Adiante…
E lembro-me do “A Cada Um Sua Verdade”, do “Alguém Terá de Morrer”—e sobretudo da última. Uma peça chamada “Ciclone”, representada em Dezembro de 1966. Ainda hoje me lembro de quase tudo, as cenas em que ela entrava, com um urso de peluche ao colo. E ainda hoje me espanto, como é que uma mulher, já com a idade que ela tinha, construiu uma personagem que sofria de Allzheimer. Era uma peça fortíssima, mas gostava de a rever um dia.
E tudo isto me veio de repente à cabeça porque um dia destes, estava eu com duas amigas num café da Ericeira e uma delas, apontando para a outra, pergunta-me: “sabes de quem é que ela era neta? Da Palmira Bastos”.
Eu ia caindo da cadeira. Porque há anos que eu conheço a Ana Maria, moramos na mesma rua em Lisboa, frequentávamos o mesmo cabeleireiro e o mesmo café (ambos fechados agora), moramos perto aqui na Ericeira, e nunca tal me passou pela cabeça. Claro que a cravei logo e, alguns dias depois, estávamos em sua casa a falar da Palmira Bastos.
Uma data de horas.
Porque eu lembrava-me de (quase) tudo o que ela contava, e ela lembrava-se de tudo o que eu contava, incluindo cantigas de revistas da época,
(o Zé Viana a cantar “fui à estreia da Palmira,/ deixa ver há quantos anos… / não digo, que ela não gosta”)
O que afinal, segundo a Ana Maria, não era verdade. A Palmira Bastos nunca escondeu a idade, e sempre conviveu muito bem com os ano que tinha.
“Adorava os netos, e tinha sempre uma voz muito doce e muito calma”, conta Ana Maria, “e era muito introvertida. O teatro ficava no teatro, nunca misturava o trabalho com a vida pessoal. Eu nunca sabia nada do que se passava no teatro—a não ser quando elogiava alguém.”
A mais nova de 5 netas, Ana Maria ainda conviveu bastante com a avó. Recorda-a, monárquica ferrenha, muito amiga da Rainha D.Amélia. Anos depois, quando a Rainha D.Amélia veio a Portugal, a mãe de Ana Maria passou-lhe um ramo de flores para as mãos e disse-lhe “vais conhecer uma pessoa muito importante e muito amiga da tua avó.”
Mas as suas opções políticas não interferiam nas suas amizades: gostava muito da Maria Barroso e teve muita pena que ela tivesse de deixar de representar.
Conta Ana Maria que o primeiro ordenado que ela recebeu, aos 16 anos, foi gasto integralmente na compra de uma máquina de costura para dar à mãe.
Talvez poucas pessoas saibam que o nome dela era Maria da Conceição. Maria da Conceição Palmira. Os pais eram espanhóis, actores itinerantes, e por acaso encontravam-se em Portugal quando ela nasceu, na Aldeia Gavinha (onde hoje existe um museu a seu respeito). Não tinham amigos, não conheciam ninguém e, quando a foram baptizar, escolheram Nª Sª da Conceição para madrinha.
Ana Maria conta que a avó era católica não praticante, mas no dia 8 de Dezembro, armava sempre um pequeno altar em sua casa.
Quando o empresário Sousa Bastos conheceu Palmira, era mais velho do que ela 30 anos. Casaram quase em segredo, e foi um escândalo na altura, embora ela fosse sempre muito discreta e fizesse tudo para não dar nas vistas. Até aí ele tinha vivido com a actriz Pepa Ruiz. Depois disso, de cada vez que se estreava uma peça onde Palmira entrasse, ela contratava uma data de gente para ir para o teatro patear e assobiar. Mas nada disso prejudicou nem a carreira de Palmira, nem o seu casamento—que durou até à morte de Sousa Bastos.
Durante a sua vida foi muitas vezes representar ao Brasil —mas fazia lá muito calor,e uma vez até chegou a desmaiar em palco…E também nunca perdia nenhuma peça brasileira que viesse a Portugal.
Ana Maria conta que a avó era uma pessoa encantadora—mas preferia que não falassem com ela se a encontravam na rua. “Não gostava de aparecer e, em toda a sua vida, só deu uma entrevista, à revista ”Modas e Bordados”
Uma vez por semana jantava com a família, e tinha uma paixão pelos bisnetos.
Preocupou-se com a sua morte. A última coisa que fez antes de morrer foi comprar um jazigo no Alto de São João para toda a família (“não quero ir para debaixo da terra”). Por vezes ia até lá e fechava-se lá dentro. “Sinto-me bem ao pé das pessoas que amei”
Dela dizia Cármen Dolores: “estava sempre em reciclagem”
E que melhor elogio se poderá fazer a uma actriz?