Crónica de Alexandre Honrado | Abril entre cravos – e pontos negros

Alexandre Honrado

Crónica de Alexandre Honrado

Abril entre cravos — e pontos negros

 

 

Abril, em 50 anos, produziu o melhor que temos, mas também nos legou cinquenta maus exemplos, que a democracia, mau grado o que a movia de raiz, deixou gerar, nascer, crescer, no seu pródigo encanto de garantir liberdades e garantias, mesmo para aqueles que, agonizantes, a odiavam e esperavam a sua hora. São 50 nódoas, a democracia é a responsável.

Em mar de cravos vermelhos, temos agora um triste ramo de cravos negros. Não simboliza, esse negrume, a morte da democracia; não simboliza as suas falhas nem as suas boas intenções; a verdade é que em última análise, não simboliza nada. Os verdadeiros símbolos guardam-se para coisas consentâneas, poderosas, grandiosas, mesmo quando não são símbolos de recordar com agrado ou afeto.

Os que não aproveitaram abril  no que abril tinha de mais autêntico, estão agora ali, amontoados, empurrados e permitidos pela vida democrática que não interfere no voto e no modo como se opta e vota, acabando por ser cúmplice dos atos mais néscios, dos traidores mais indecorosos que odeiam a libertada terra comum que os alimenta, dos que cavalgam a falta de respeito pelos outros — a começar pelos mais débeis e necessitados de apoio — excitadas mulas acéfalas que se movimentam à força da cenoura que lhes agitam diante dos focinhos babados e munidos de esgares de falsa ironia e moral de pacote e falsidade.

Abril, em 50 anos, querendo ser, permitiu ser. Até aqueles que nos ameaçam o ser e que, com a ilusão de que os cofres tinham alguma coisa reluzente para deitar a mão, correram a organizar-se, vestidos de passado, mantinha de burel, botas de elástico, palas laterais aos olhos na cabeçorra moída e parcelada.

Volta agora a pergunta: será que a noção de banalidade do mal, que a filósofa Hannah Arendt forja no início da década de 1960, ainda serve para compreender as contradições da nossa sociedade? A resposta está para quem a consiga perseguir. A certeza é só uma: festejamos abril em liberdade porque o devemos a abril e a tudo o que nos trouxe. Pedimos desculpa pelos pontos negros, que permitimos medrar. E por aqueles que por cansaço lhes deram a ilusão de um milhão, como nos jogos da Santa Casa. Pobre milhão que arrisca assim o seu futuro, pois caiu no logro de março e atrapalhou-se equivocado esquecendo o abril que ainda lhe dá esse poder. Uma barriga de aluguer que quis castigar quem não merecia castigo e que foi arrastado pela ignomínia e pelo boato que agora, tarde de mais, pede desculpa.

 

P.S.- quiseram, recentemente, insultar-me (não sei se é o termo) dizendo que eu devo ser um daqueles que deve tudo à esquerda, por isso penso assim.

Não sabem, uma vez mais, o que dizem: devo este meu país liberto à esquerda e à direita, democráticas. Que produziram valor e gente de valor, que legislou com coragem e proximidade nas suas divergências. Devo tudo aos valores que abril me ensinou. Sou aquilo que sou, mesmo que alguns não o queiram e até esses só são possíveis hoje graças ao abril que há 50 anos nos renascia.

Alexandre Honrado

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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