Crónica de Jorge C Ferreira | Os pecados

Crónica

 

Os pecados
por Jorge C Ferreira

 

Mãos que benzem. Mãos que misturam a água e o vinho. Mãos que abrem o sacrário. Mãos que erguem o que chamam o Corpo de Cristo. Mãos que distribuem a fé em hóstias. O sinal da cruz. A persignação. A apologia do bem. Um Cristo que sofre pregado na cruz. Um Cristo que vai morrer.

Mãos também do pecado. Mãos sem vergonha. Mãos sujas por actos indignos. Mãos que marcam gente para sempre. Mãos da perdição. Mãos da indignidade. Mãos sapudas.  Mãos carregadas do mal. Mãos que, apesar de tudo, continuam a ser mãos que benzem. Jesus Cristo morre mais um pouco.

O menino pobre a quem uma madrinha ofereceu o enxoval para ir para o seminário. O falso chamamento. A necessidade pura e dura. Para muitos, o único modo de estudar. Aprender o que não queriam. As sevícias mais horrendas. Os corpos branquinhos a serem devastados. A tentativa de inversão do pecado. O tal “sofreste porque merecias”. A falta de vergonha. A oração soluçada. As dores que ficam para a vida. Alguns irão fazer a outros o que sofreram. Uma roda que não pára. Uma lágrima cai dos olhos de Jesus Cristo.

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O segredo da confissão. O escuro do confessionário. O assédio através de palavras. As insinuações. A provocação pura e simples. Quando oiço falar em parque do perdão fico com medo. Quem perdoa a quem? Quem benze quem? Quem se deve ajoelhar? Quem diz o quê a quem? O meu medo mantém-se. Jesus Cristo o seu ar dorido, circunspecto.

Os bispos. Os bispos na primeira fila ouvem o que já sabiam. Um vê as horas com ar de quem pensa que isto nunca mais acaba. Outro olha para o ar como se não fosse nada com ele. A outro treme-lhe a perna. não sei porquê. Outro não consegue dissimular o seu ar cínico. Outro dorme porque acha tudo um cansaço. Os relatos são violentos. Relatos de que eles já teriam conhecimento. O encobrimento destes factos não é um pecado maior, mortal? Como é que esta gente se mantém impávida e serena nos seus lugares? Jesus Cristo deve ter-se irritado, apesar de todo o sofrimento.

Senhores bispos, tirem o solidéu perante as vítimas do vosso rebanho. Deixem-se cair de joelhos e peçam perdão. Só pedir perdão tem algum significado. Tudo o resto são balelas. Resignem, meus senhores, já que não vos vi corarem de vergonha pelo encobrimento de actos ignóbeis. Jesus Cristo agradeceria.

Já vos contei neste espaço a minha passagem pela igreja e tenho de vos dizer, em abono da verdade, que nunca sofri nada destas vergonhas. Abandonei a igreja cedo. De vez em quando entro numa e sento-me no silêncio. No outro dia dei conta de que já não sei as orações que a minha Mãe me ensinou e que mais tarde aprendi em latim. Acho que as igrejas deviam estar com pendões negros nas fachadas em sinal de luto. Que todos, os que quisessem, rezassem ao seu Deus quando quisessem e sentissem necessidade. Que os padres se juntassem a eles e com eles rezassem.

Se ainda fosse crente não sei como me sentiria. Acho que deveriam ser os católicos a levantarem-se contra a hierarquia e a obrigar a mudança naquela maneira de esconder o inconcebível. Naquele modo, quase mafioso, da confidencialidade das inquirições. No seu registo unicamente oral. Não será já tempo de abrir a igreja ao mundo? De a colocar no nosso tempo?

«Tu sabes que nem todos os padres são assim.»

Fala de Isaurinda.

«Sim, eu sei. Mal de nós. Mas o que ouvimos é chocante.»

Respondo.

«Nisso tens razão. Uma vergonha. Este mundo está perdido.»

De novo Isaurinda e vai, enquanto se benze vai dizendo: que Deus os perdoe.»

Jorge C Ferreira Março/2023(388)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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19 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Os pecados”

  1. maria fernanda morais aires gonçalves

    Todos nos sentimos indignados, revoltados com tamanha hedionda verdade nojenta, crimes praticados dentro da igreja católica.
    Como dizes Cristo está de novo a ser cruxificado assim como as vítimas dos crimes cometidos. Pensamos muito nos nossos familiares. E se tivessem sido vítimas?
    Quero que se faça justiça e que se ponha ordem, corrijam e acabem estes comportamentos.
    A minha fé em Deus e em Cristo não sai abalada. Eu procuro reger a minha vida por princípios cristãos na relação com o próximo.

  2. O Mundo ao contrário. Em tanto…
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. É verdade o mundo do avesso. Uma vergonha. Muito grato pela tua presença

  3. Regina Conde

    As tuas palavras que tão bem define a situação conhecida e documentada. Tantos homens e mulheres ainda hoje sofrem por terem sido meninos obrigados a viverem calados por quem os devia proteger. Abraço meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. É isso mesmo, minha Amiga. Não tenho mais nada a acrescentar. A minha gratidão pela tua presença. Abraço

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Como sempre que bem descreve, um tão horroroso assunto, que a igreja tem ignorado!!!
    Apesar de terem sido muitas as chamadas de atenção.
    Obrigada, querido escritor, pela forma única e sincera, como aborda esta indigna situação.
    Adorei o que li e reli, meu querido amigo.
    Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. É horrível. Temos de defender as nossas crianças. Aa respostas e os encobrimentos da hierarquia da Igreja são intoleráveis. Imensa gratidão pela sua presença. Abraço enorme

  5. Ivone Maria Pessoa Teles

    Apesar de já ter sentido, pelo que já ias deixando escrito, qual o teu ” sentir ” em relação ao que, ( só agora ?), veio mais ” espalhado “, adorei a forma como o expuseste na tua Crónica. Tanta verdade. A minha Bisavó materna, mãe do meu Avô, teve-o com 13 anos sendo o pai da criança o padre da Freguesia. Eu e netos mais velhos ainda a conheceram( era a nossa “avó velha”) e viveu sempre com o este filho mais velho, depois ter ficado viúva dum casamento que teve. Beijinhos amigos. Ivone

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. É tudo tão antigo e vem do princípio de tudo. Obrigado por trazeres aqui esse testemunho. Um testemunho que muitos podiam dar. A minha imensa gratidão. Abraço

  6. Filomena Geraldes

    Li e reli esta crónica várias vezes.
    Resolvi reflectir mais sobre esta abominação.
    Sei que creio em Deus. Não confio nos homens. Alguns deles são capazes das maiores e mais atrozes crueldades. Nada os impede. Nem os votos. A batina. A cruz que pendem ao peito.
    Cristo chora .Como diz o nosso cronista.
    A crónica é a imagem real e crua de algo que nos ofende e atemoriza. É brilhante.
    Transporta-nos para um mundo fechado onde a vergonha não tem lugar…
    O exemplo é substituído pelo instinto carnal.
    As vítimas fecharam-se nos seus casulos.
    Calaram o medo. Foram obrigadas a viver com ele, lado a lado. A sentirem culpa. A crescerem com esse estigma.O que devia representar o bem é, afinal, personificação
    do mal.
    Também sei que não devemos generalizar.
    Que existem sombras e luz em todos nós mas o que não concebo é que sejam membros da Igreja a pecar. Não pecados menores mas aqueles que destroem vidas.
    Como é isto possível?
    Vejo a pedofilia como um crime hediondo.
    Embora não tenha como costume julgar e acusar não posso ficar indiferente!
    Ouço o grito lancinante dos inocentes.
    Os semblantes fechados dos senhores da Igreja. Unidos perante as acusações. Pedro criou-a. Os homens transfiguraram-na. Fizeram-na à sua imagem. Pecadora.
    Ao cronista que se atreveu. Não calou. Nela descreveu o seu mais profundo sentir e uma ira que a todos envergonha. A minha gratidão!

    .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Sempre um gosto ler-te, mesmo quando o tema é horrível. Mena a Igreja é obra dos homens e os seu pecados são imensos. Temos de defender as nossas crianças. A minha gratidão por estares aqui. Abraço

  7. Raquel Lameirão

    Esta é uma das suas melhores crónicas Jorge…..e talvez uma das mais difíceis de ler…..por tanta monstruosidade e maldade que transparece nos atos de uma igreja podre e uns bispos sem vergonha, que a todos nos envergonham….
    Também eu há muito me afastei desta igreja podre…..e perdi a fé em que fui educada……e estou convicta que os católicos que continuam a crer nesta igreja, se deviam revoltar e exigir atitude a estes bispos….padres e toda a igreja!!!
    A Isaurinda está certa, não são todos iguais, mas esses têm de se mostrar revoltados e condenar as atitudes fos seus pares publicamente…..têm de dinificar a instituição e devem também pedir desculpa às vítimas!!

    Triste mundo este…….

    Um abraço Jorge!!

    1. Eulália Coutinho Pereira

      Excelente..A verdade. A vergonha.
      As notícias relatadas ao pormenor, até à exaustão, a toda a hora, deixaram a sensação de vergonha, tristeza profunda e muita revolta.
      Que mundo é este?
      Que pessoas podem abusar das crianças que deviam proteger?
      Crianças indefesas, com a arma do pecado a pairar sobre a cabeça.
      E tudo continua igual. Crime hediondo escondido pela hipocrisia de quem devia ter agido. Conhecida por todos, a situação vai-se arrastando.
      Obrigada Amigo por estar sempre desse lado, por despertar consciências.
      Grande abraço.

      1. Ferreira Jorge C

        Obrigado Eulália. Assertivo o seu comentário. Aí diz tudo. Temos de defender as vítimas. Muito grato por estar aqui.

    2. Ferreira Jorge C

      Obrigado Raquel. Na verdade a resposta da hierarquia da Igreja foi lastimável. Dos casos de pedofilia nem é preciso falar, são uma vergonha em qualquer sítio ou lugar. Grato pela sua presença. Abraço

  8. Clara Figueiredo

    Muito bom… muito tocante!
    Às vezes sinto vergonha…mas também, não vou à igreja!

    Abraço,meu amigo ❤️

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Clara. É essencialmente triste. Envergonha-nos a todos. Grato pela sua presença. Abraço

  9. Fernanda Luís

    Boa noite Jorge!
    Mais uma crónica brilhante. Cheia de verdade. Também fui educada na religião cristã católica. À medida que fui descobrindo a verdadeira história da Igreja Apostólica Romana, ao longo dos séculos, fui-me afastando e hoje sou praticamente ateia. Não por ter sido vítima de abusos…
    Guardo alguns ensinamentos e princípios cristãos que me têm orientado para o “bém ou boas ações”. Ainda sinto muito o peso do “pecado” no sentido da culpabilização, embora faça um esforço para combater esses conflitos internos.
    Durante um bom período, dediquei-me a ler e a aprofundar a “Teologia da Libertação”. Ajudou-me muito nas decisões face à Igreja e às religiões.
    Também adoro o silêncio e a frescura das igrejas no verão.
    De facto, é uma vergonha o comportamento desta cambada de beatos…
    Cá o espero para a semana
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Excelente o seu comentário. A sua experiência. A Igreja é obra dos homens. Muito grato pela sua presença neste espaço. Abraço

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